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segunda-feira, 21 de maio de 2012

O ÚLTIMO VOO DE UMA ALMA, PELA TRANSBRASIL




Ao ver sua expressão de mulher de 40 anos, não sabia se a chamaria de "você", em reconhecimento ao seu rosto ainda juvenil. Ou apelaria ao "senhora" em respeito à dignidade comprometida de sua expressão sofrida da vida.


- Oi, pois não?


- Alguém me segue...


- A senhora sabe quem é? Sabe se teria motivo para isso?


- Sei. É o meu passado.


- Algo que a senhora fez?


- Não. É tudo o que fiz. Vivi de forma intensa. Muito intensa. Agora, minha imaginação esgotou-se. E não consigo mais agir de forma natural. Tudo é sempre a mesma repetição de algo que já fiz. E sempre que eu faço, igual, um senhor alto, belo mesmo, de uniforme da Transbrasil, surge para me levar à minha casa. E lá, enfrento a luta feroz pela minha vida, dar-lhe significado ao ser confrontada com a ideia de que viver é o duelo, dia e noite, para sorrir depois de fazer as mesmas coisas que gerações e gerações fizeram da mesma e repetida forma, apenas mudando de traje a cada representação.


- Um comissário de bordo da Transbrasil?!


- Não sei se o senhor a conheceu. É uma companhia aérea que desapareceu. Foi nela que viajei de avião pela primeira vez. Lá, fiz amor pela primeira vez, dentro do banheiro apertado de um avião, na época em que as pessoas levavam garfos e facas de metal que eram usados para comer.


- E o primeiro homem, suponho, é o mesmo que vai encher o saco da senhora...?


- Sim, ele é o meu passado. E reapareceu. Eu fui buscá-lo, na verdade. Dentro de uma cabine de um boeing da Transbrasil, envelhecido e empoeirado no pátio do aeroporto de Brasília.
De fato, algumas aeronaves da Transbrasil apodrecem, hoje, na pista do aeroporto, em Brasília, esperando sabe-se lá o quê...Uns poucos tipos esquisitos visitam o local como se fosse um museu, onde os artefatos de visitação são suas almas comprometidas em visitar um canto de passado feliz.


- Fui lá, entrei, consegui invadir um dos aviões, sorrateira e chamei pela alma daquele que me fez rir da vida, dentro de uma cabine de avião, a não sei quantos mil metros de altura. Foi lá que eu decidi a jura de nunca, nunca, me permitir fazer nada comum, ser o comum das pessoas, sob juramento de, não sendo assim, poder ser castigada pela vida como ela quisesse... agora, quero me livrar da minha jura, do meu passado. Quero vida nova, viver de novo, viver do novo! Me ajuda?


É, outro ajuste de contas no meu balcão. Mas, de repente, silêncio. Um gesto lento de cabeça inclinando-se, até uma postura cabisbaixa. E mais silêncio.
Eu conhecia aquela mulher. Em um plantão ela havia abordado um colega meu. Depois, voltou dizendo-se apaixonada pela acolhida dele. Passou a segui-lo pela rua. Não como um fantasma. Mas sim um ostensivo tormento. Quase o enlouqueceu. A diferença entre as pessoas erradas e os fantasmas e as pessoas é que os fantasmas aparecem depois da loucura. As pessoas erradas, antes.


Quando percebi, ela estava me olhando com afeto. E carregada dessa expressão, saiu. De braços dados com o senhor de uniforme de comissário da Transbrasil.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

CURVA NO POÇO


Um senhor, de postura muito digna, sentou-se na mesma mesa que ocupei hoje durante o almoço. Não! Ele não tinha apenas uma postura digna. Era mais. Sim, um senhor bonito. Maduro.

Antes de repousar sua bandeija diante da minha - era o único lugar possível de ser ocupado -, pareceu-me desorientado.

- Com licença.

- Fique à vontade.

Tenho o péssimo hábito de comer calado. Duas, três garfadas. Virei meus olhos para o olhar desinteressado daquele homem.

- Está tudo bem. A comida é barata, mas honesta. Devia experimentar.

Ele sorriu ao comentário. E desfez rapidamente o sorriso, congelando a expressão. Dois minutos depois, perguntou-me:

- Viu?
- O quê?
- As rugas...
- Vi, sim, claro. O senhor sorriu...não devia se preocupar. As rugas são as brechas onde escondemos nosso passado.

- Eu perdi meu passado nas minhas rugas.
-  ...

Não passamos às amenidades. A frase do homem apenas encerrou de momento o diálogo. Que foi retomado depois que ele, em definitivo, desistiu do prato. Indagou sobre um lugar qualquer. Eu não soube dar a resposta.

- Vamos na delegacia. O pessoal lá conhece tudo. Se tem alguém que pode informá-lo, ele está lá.

Como intuí, ninguém ouviu falar do endereço, que parecia uma junção de diversos outros endereços. Uma sopa de letras, tendo como mistura as letras que compõem os endereços de Brasília.

- Você está bem? Não comeu, parece alheio...
- Estou, apenas perdi outra referência.
- E quando perdeu as outras?
- Quando eu vi a primeira das minhas rugas no espelho.

Jovair era o nome. A idade não revelou. Sei que era dessas figuras que encontramos um dia, mas que nunca pareceu pertencer a algum lugar. Era um andarilho na essência e no aspecto. Quais rotas? Nunca soube.

- Vivi a vida das inconstâncias até ter a pele talhada pela primeira marca de tempo. Era feliz. Minha referência eram meus frutos maduros. Meus corações cansados.
- Mulheres mais velhas?
- Sim. Eram meu abrigo, meu ventre e minha potência. Um corte acabou com tudo isso. Quando vi uma ruga, vi todas as outras que habitavam, habitam e habitarão meu rosto.  E, de menino, passei ao parceiro que não consegue arrefecer os ânimos para dividir o leito.
- É o comum de nós todos, a vida.
- Eu perdi o jogo dos espelhos, cidadão. Deitei com o tempo. E a maior peça que ele nos prega é a da inocência sobre sua força. Eu sorria o tempo todo, montado no tempo. E é o sorriso, inocente, de achar que o domamos que nos distrai. E dá a chance ao tempo de tatuar no rosto distraído e sorridente a sua assinatura.

Nunca mais vi Jovair. Qualquer que seja seu destino errático, chegou onde pretendia, quero acreditar.

terça-feira, 8 de maio de 2012

PULMÃO ILEGÍTIMO




A escrita insiste. Mas, ao injetar tinta no papel que recebe minha sina de escrever, sinto-me lisonjeado pelo convite de um remanso. É onde as minhas forças criativas se deterioram em um bater de braços infrutífero. Não consigo o impulso que me desvencilharia da força de uma água maculada.


Ainda, sim, eis que voo, de repente, porque o remanso - apelido do turbilhão de águas - vai se depurando, pouco a pouco, em um pulmão que não se contenta e viver apenas a natureza de um órgão aéreo. Minha vingança ao turbilhão é adorá-lo!


E aqui está você, companheiro leitor, unido a mim em um vicejante abraço épico. Convencido. Emocionado, quando possível. Um fiel amigo a ler este roteiro que enceno e penso acreditar. Porque é a sua louca fantasia que me convence do que proponho a você. E sua mão a me conduzir pelo fio do labirinto que criei.


Liberta-te ou devoro-te!

sexta-feira, 27 de abril de 2012

SE UM QUALQUER ME OUVISSE...


Estive em coma. A ausência dos homens. Volto aos poucos ao meu estado de ronda. A solidão de caligrafias virtuais despejadas em rotinas de burocracia.


Entra a primeira das muitas missões perdidas. Uma senhora de convicções amarrotadas. Cumpriu o ciclo da peregrinações às repartições da eterna insatisfação. Veio ao ápice da liturtgia e sorveu a hóstia amarga do desrespeito. Eu sai da porta com aquela senhora de andar sem adjetivos. Corpo presente. Vida diluída. A civilização que se resume às reticências...


Fiz um intervalo. E nele permaneci. Saí na primeira primeira porta que ofereceu sua virtude de abrigo. Tempos cansados. Tempos que forçam minha pernas a se recolher. Que gesto poderia fazer do meu corpo um ventre? 


Um plantão pode ser o desmoronar de um homem. Mas o coletivo de plantões tomba um homem convicto. De volta! Bem chegado no que a minha rotina de ignorar pode oferecer. Estou me recuperando. Enfim, retorno ao coma.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DOIS BRAÇOS. UM RIO

Sua mão segura a minha. Seguro. Retorno. Seguro. Seu corpo, entretanto, é claque. Inverossímel desejo em seu sorriso. Devastado com suavidade. Sou horas que correm truncadas. Desvio de um tempo dorido que não flui a um justo progresso. Deixei-me corromper na vazante de seus braços estendidos. 



terça-feira, 10 de abril de 2012

CANÇÃO PARA UMA HARPIA


Harpia, insone. Rouba meu sentimento, ainda que me assegure a comida. Se há sentido que possa descobrir, eu mimetizo todo o significado, a fim de ser sua perseguição infindável.


Basta-me o açoite de um carrasco inseguro!

quarta-feira, 14 de março de 2012

DOS QUATRO AOS QUARENTA


Aos quatros anos, meu herói revelava sua identidade sempre que via o sorriso do meu pai. Aos quarenta, minha heroína tem quatro anos. E ainda se revela sempre que sorri.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

UM INFERNO MAIS EMBAIXO


Havia uma menina chamada Corá. Ela termina a história se chamando Perséfone. Sua mãe era Ceres.  Que não era uma mãe normal, era deusa da agricultura na mitologia romana. O pai não ficava atrás, era o todo poderoso Júpiter. Ocorre que um tal de Hades – que era nome dado a um deus e ao local para onde se dirigiam os mortos depois de, evidentemente, morrerem.

O Hades, local, era o espólio de guerra de Hades, o deus. Assim como os oceanos eram o espólio de guerra de Neptuno – divisão realizada depois da batalha vencida com os titãs. A vitória dos deuses olímpicos sobre os titãs representou, dentro da História ocidental, o momento em que a racionalidade passa a vencer os instintos. Assim sendo, dentro dos limites “jurisdicionais” de Zeus não se incluíam nem os oceanos nem o reino dos mortos. Apenas a terra dos homens e a morada dos deuses olímpicos. Ocorre que, dia desses, Corá, bela e inocente fazia um passeio quando cruzou o caminho de Hades, que, acuado pela súbita paixão, arrebatou-a para seus domínios.

Sem encontrar a filha, Ceres cai em depressão profunda. O período culmina com um momento de fome entre os homens. Preocupado, Zeus pede a intervenção de Hermes, deus ligado ao dom da palavra, para que tente convencer Hades a deixar Corá voltar para Ceres. Obtém sucesso parcial. Hades permite que Corá veja a mãe apenas durante um período do ano, o restante deverá ficar ele. A situação, dizem, gerou a diversidade das estações do ano. O período em que Ceres e Corá estão juntas corresponde ao período do plantio e da colheita. A separação, residualmente, ao do estio. Importante: de toda a História, que pode ter confundido nomes romanos e gregos de deuses, vá lá, sobra o mito. O mito de Perséfone. Isso porque, para sair do Hades, Corá teve que transmutar seu lado humano em divino. Assim, retornou dos infernos, sem morrer, e com o nome de Perséfone.

Na astrologia ocidental, o mito de Perséfone raptada corresponde ao mito do signo de virgem.

A intimidade virginiana com idas e retorno dos infernos acabou chamando a minha atenção ao ouvir o inconfundível Charlie Parker, gênio do jazz. O homem que se entupiu literalmente de heroína e, de abraço em abraço no capeta, fez da dor sua eterna morada.

O inferno de Bird, apelido de Parker, foi a versão bebop dos corrimões pelos quais desceu tantas vezes Amy Winehouse. Degraus cujos pés de Freddie Mercury percorreram.

E não haveria como deixar de citar Micheal Jackson e Jesse James. O primeiro o mais funesto caso de uma vítima da cultura pop; o segundo, um bandido capaz de dar as costas ao seu algoz. E como se a vida parecesse a cada um deles uma licença poética ao inferno. Intimidade? Não sei até onde chegariam. O inferno, no caso da relação desses nativos de virgo, é mais embaixo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

VALSA DE CURUPIRAS


O Netinho era, agora, Alberto Rossi Neto. Lenine, o deputado Carlos Alberto. Lolô, a vó Lola da Martinha e do Cássio. Mas a 


Tereza...ah...a Tereza era uma colosso. Ainda é, melhor dizendo, o colosso de sempre. Opinião dos três homens da mesa, verbalizada por Lolô:

- Tu continua um colosso, hem, minha filha, olha a cara dos três babacas, tenho certeza que acham o mesmo. 

- Lolô, a exagerada. Dá um beijo,amiga! Calados, cada um dos amigos preferiu o silêncio diante do mito juvenil que Tereza fora para cada um deles. 

"É um pesadelo. Ela está ainda mais linda, nada se transforma para pior nesta mulher, cacete?!", pensou Lenine. 

"Ela está exatamente como imaginei. Tenho certeza que conseguiu isso a custa de muito sofrimento dos otários. Cara, se eu tivesse casado com essa daí, tinha me fudido", filosofou Netinho. 

"Ela mereceu cada uma das bronhas que toquei. Quem sabe agora que tá coroa, deve ter separado, eu pego. Acabo com ela...hehehe", pensou Zé. Que não tinha sido mencionado antes e, àquela altura da vida, continuava sendo o Zé. 

A noite transcorreu com os três membros masculinos tentando disfarçar o interesse em Tereza. Uma senhora mulher, cujo bronzeado acentuava o verde dos olhos e o castanho dos cabelos. 

"Como ela consegue ter o mesmo bronzeado por 29 anos e a pele continuar a mesma??", ensimesmou-se Lolô a certa altura do papo. 

- Diz para a gente, Tereza, foram quantos casamentos? Quantos homens tiveram a honra de conhecer O amor da intangível Tereza?

- Ora, meu nobre deputado, muitos conheceram meu amor, mas nunca me casei.

E os marmanjos se alternaram nas pavonices a fim de atrair para perto de si a Tereza colossal. Mas o colosso decidiu por pedir uma carona à amiga. Soube também demonstrar aos galanteadores que ainda dominava a arte de escorre pelos dedos dos pretendentes sem que pudessem perceber a manobra a tempo de evitá-la.

"Tereza, Tereza, deixou os três senhores sentados à mesa. Fez dos já respeitáveis senhores, meninos de novo. Ah, isso não podem negar...rss...Tereza não lhes negou uma noite de infância. Ninguém conquistou Tereza", divertiu-se a vó Lola.

- Lolô, me deixa na esquina, mesmo. Eu fico a pé.

Foi assim, plantanda em uma esquina, de frente para uma sobreloja que Tereza foi deixada.

- Vou atrás do bofe,amiga. Rsss...menino de tudo. Sofro tanto. Pior que acho que dessa vez vai. Amor de tudo, dos poucos, da vida. Acho que ele também. Tá na hora de sossego, né, Lolô.

E não é que o bofe era sobrinho de uma amiga de Lolô, a Beatriz. Ao menos tinha o mesmo endereço, em cima de uma comercial, por onde ela tinha passado tantas vezes para pegar o menino, como favor à amiga. Que, em uma das caronas, ao receber o sobrinho, depois relatou a confidencia dele para um amigo. Ao menos, tentou reproduzir o que entendeu da conversa.

- Amiga, estamos velha. E perdendo tempo. O Bruno está saindo com uma fulana da nossa idade!

- Jura, Bia?! Ah, não. Bruninho é um colosso! Quem é a dona?

- Sei não. Peguei ele de papo no telefone. Com um amiguinho...Ele elogiou muito ela. Achei até que era uma menininha pelo que falavam. Mas, não. Ele falou a idade...quase engasguei. Podia ser uma de nós. Mas quer saber? Tem futuro não. Ele disse que faltava paixão. Que ela era muito linda, mas faltava paixão.

O diálogo veio à cabeça de Lolô como reminiscência de antontem...

"E quem diria...tantos amores que Tereza acabou não conquistando ninguém...". Tereza, para sempre Tereza.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

WOODWORKER


Quando algemei José Paulo, pude ver a ponta dos dedos e o resto das mãos cravados de farpas. Ele mancava devido ao ferimento provocado por um tiro que recebeu ao levantar um banco em direção do policial que o abordava – o cana o havia alertado que, se mantivesse o banco na mão, iria tomar o tiro. – O cara não soltou o banco, aí não teve jeito, me contou o colega.

A prisão do grupo de quatro especialistas em furtar e roubar residências – ao qual pertencia José Paulo – deveria ser o destaque de meu último plantão. Há dias eles rondavam moradias e causavam terror em bairros diversos. Fato alardeado aos quatro cantos pela imprensa local. Formação de quadrilha, cárcere privado, furto qualificado e diversas outras incidências da lei penal estavam no currículo daquela canalha.

Mas a festiva sensação de dever cumprido degradou-se por um silêncio súbito pairando sobre a cela provisória onde os detentos aguardaram o encaminhamento ao presídio.

Em cela ou em presídio, o silêncio é o pior sintoma. A sinfonia muda de um prefácio de terror. Todos os policiais disponíveis, em presságio coletivo, foram para os fundos da delegacia. E lá estava José Paulo, com uma estaca de madeira cravada em seu peito. E todos os seus “companheiros” de cabeça baixa, mudos no pacto de silêncio que une autores de tragédias premeditadas.

O silêncio durou até separarmos os “sobreviventes”. Longe um dos outros, não foi difícil alimentar o temor dentre eles de que um entregasse o outro de bandeja como responsável pelo crime. A autoria não ficou bem esclarecida, porém. Apenas a motivação.

- Foi o carpinteiro que ferrou nóis... Ele tinha que aprender.

O relato que se seguiu, sobre a execução, demonstrou a forma de agir do grupo. José Paulo, o carpinteiro, era o mais novo dentre eles. O único a aparentar alguma dignidade de trabalhador. Os outros tinham a cara de quem a sociedade mastiga e cospe.

- Ele que entrava nas casa. Os pessoal confiava sempre nele.

A confiança abriu muitas portas. Todas para que José Paulo ganhasse crédito junto aos donos das residências, de forma suficiente para franquear o acesso aos outros integrantes do bando.

- Mas ele tinha um gosto pela carpintaria. E o senhor sabe, nóis tem que escolhê, ou é ladrão ou num é! Num tem bagunça não.

A dúvida selou o destino do carpinteiro.

- O último serviço foi lá em casa. Ele tinha cara de menino bom.

Foi o depoimento da última vítima, convidada a comparecer para o reconhecimento, que nos esclareceu os detalhes do modus operandi, não do bando, mas de José Paulo.

- O senhor acredita que quase tudo que contratamos o danado fez. Com capricho. Menos um banco que eu tinha pedido para ele consertar.

- É, ele estava com um banco na mão quando nós o prendemos.

O depoimento de um dos bandidos finalmente fechou a história.

- Pois é, senhor. Ele disse que tinha que consertá um banco.  Ixi, fudeu nóis. Num conseguimo ir embora, esperando o carpiteiro. Já tinha quase fudido nóis tudo uma vez. Eu disse que nóis ia ferrar ele da próxima.

Sim, na ânsia de dar seu serviço por completo, como sempre fizera nas outras casas por onde passou, o carpinteiro atrasou o bando tempo suficiente para que a polícia que fazia ronda no local percebesse algo errado. Bando preso, enfim.

- E como ele morreu?

- Ah, senhor, morreu como divia...morreu com um pau no meio dos peito.

Sim, um descuido da faxineira havia deixado um cabo de vassoura próximo à cela. Perto o suficiente para que, imaginem, Paulo José o pegasse, sem prever que a última obra em madeira com a qual conviveria não seria feita pelas suas mãos.

- É, senhor, já que o muleque gostava tanto de madeira, agora vai ficar pertinho dela de vez.






sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

CONHECE TUA INTERROGAÇÃO


O oráculo. Invenção humana que ganha respaldo se creditada ao divino. E como nos impressiona. Lá estão as respostas. Mas quer saber? Durante o plantão de hoje acabei estabelecendo que os oráculos continuam sendo o que são, só que a era atual se caracteriza pela forma como lidamos com os mensageiros do futuro. A época atual difere das anteriores por um fato simples. Hoje, tão importante quanto saber a resposta do oráculo é a busca pela pergunta adequada.

Claro que nosso oráculo é a rede mundial de computadores.  E a nova era – a de Aquárius ninguém sabe ninguém viu... – é a do comodismo informacional. A informação é um perdigueiro, que busca de forma incansável seu destino. Hoje, o destinatário senta e se refestela em meio a dados e alertas informativos. Eis a razão (ou uma das razões) pela qual o oráculo sedento de respostas corre o risco de limitar-se a responder a um número restrito de perguntas. Quando pode mais, muito mais que isso.

Qual o propósito dessa reflexão? Bom, em algum momento tinha que preencher estas páginas, virtuais, com filosofia de botequim. Sente aí, tome mais um gole, seja feliz e diletante.

E o fio da meada de tudo o que está aqui começou com a voz sussurrante de Chet Baker. Que, se forem procurar na rede, saberão que pode ter sido a influência fundamental de João Gilberto e sua vozinha bossa nova – é possível encontrar controvérsias, claro (onde mesmo?).

Ao escutar Chet Baker, fiz um mea culpa sobre as limitações da humanidade. Ao ouvi-lo acompanhado de Stan Getz, simplesmente vi que a raça humana é capaz de prodígios do quilate daqueles caras. Acabei indo mais a fundo no prodigioso universo da vida da música de acabei sabendo: um dia, um sujeito chamado Pitágoras esticou uma corda, percebeu que exatamente metade dela estaria o que depois de tudo foi chamado de “oitava”. E criou o sistema capaz de dar elementos para a sistematização da música. Entendam!!! A alma ganhou voz.

Outro pensamento que me foi ofertado pela net diz que a música, em si, não é arte. Mas a sua execução o é. Ou seja, domar vibração e fazer arte é elevar o estatus tão combalido desta tal gente.

Aí, se me peguei descobrindo que foi Pitágoras e seu monocórdio que meteram o cérebro na história da música, decidir sentar a pua no oráculo. Quis saber quem deu o nome de Sol à nota musical Sol. Eu tinha a pergunta, e o oráculo a resposta: foi um frei Beneditino.

Guido D´Arezzo que teve a ideia. A lógica é simples. Pegou as sílabas iniciais de um hino a São João Batista (Ut queant laxis / Re sonare fibris / Mi ra gestorum / Fa muli tuorum / Sol ve polluti / La bii reatum / Sancte Ioannes) e com elas nominou o que hoje conhecemos como:

Dó= Ut (como era de difícil solfejo, o Ut saiu e ficou Dó);
Ré= (Re sonare)
Mi= (Mi Ra)
Fá= (Fa muli)
Sol= (Sol vê)
Lá= (La bii)
Si=( Sante Iohannes).

Fabuloso! É a alma falando do resultado de um diálogo produzido com a divindade via oráculo. Mas estamos a cada dia mais parecidos a repórteres que conseguem uma entrevista com Deus e, ao chegarmos lá, o tradutor não tem respostas a dar porque não há perguntas. O que me leva à última conclusão: o sobrenatural não mais é do que um grito de um Deus enjoado de se manifestar pela sutileza a tantos míopes.

Vendo longe assim, será que realmente há necessidade de um oráculo para nos dizer do amanhã?



“Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo- inscrição no Oráculo de Delfos”.

sábado, 7 de janeiro de 2012

RESPEITEMOS JANUÁRIO!

Ah, sêo Januário. Cliente antigo. Primeiro, talvez. Caso de neurose freudiana crônica e encarnada. Passagens diversas por este meu balcão, do alto de onde eu já adquirira certa paciência em um "cadinho" de carinho por uma pessoa que acreditava no mundo perfeito. Não perfeição nas idéias, mas nas práticas cotidianas.

Comportamento que lhe valeu muitas vindas de madrugada ao meu plantão. Eu era único que lhe atendia, ainda, com boa vontade. Visitou-me na condição de autor e vítima. A história é que sempre foi a mesma: perder a razão sempre que se via diante de um pormenor em desconformidade com os acordos que havia assinado.

Vale o tributo a sêo Januário: nunca pousara diante de mim em razão de um acordo descumprido por ele ou algum motivo que desse a outrem razão para queixas. Nunca! Suas visitas sempre foram fruto da impaciência - que virarava raiva - quando tentatavam enrolá-lo, o que descabava para xingamentos, brigas e murros. E o velhote nem se saía mal. No mais das vezes, era ele quem passava de ofendido a ofensor, por sentar a mão em algum vigarista, tentando a passar a perna no velhinho de pouca conversa, muita atitude e sem meias palavras.

Bastava conhecer um pouco mais sêo Januário para entender sua forma de agir. Tive a chance de visitar sua marcenaria (era carpinteiro). Tudo o que se via estava em seu devido lugar. Os móveis que lhe eram encomendados ou as reformas a ele confiadas o eram porque, além de bem feitos, tinham um detalhe a mais. Sêo Januário cuidava com extremo zelo do que se via e do que não se via. As partes ocultas de um móvel eram tão importantes para ele quanto o exterior. Prazos em sua vida eram fatais. Eram respeitados como se respeitasse uma medida judicial (ele acreditava na ordem dos juízes). E todo esse zelo era transportado para a vida do fazedor de móveis. Que não conseguia viver sem o sacrossanto respeito aos contratos de forma extremada.

Ah, sêo Januário...

- Olá, garoto, você aqui? Você é filho do sêo Januário, não? Luiz alguma coisa...né? 
- Sim...
- E como está seu avô, meu amigo? Já tem uma semana que não o vejo...ainda bem...rs...
- Apertado...
- Mas o véio nunca foi de fazer dívida. É dinheiro?
- Apertado no caixão, seu polícial. Ele enfartou. Morte na hora. Ontem, pela manhã. Foi descansar o véio, já tinha brigado demais nesta vida.
- Deus o tenha. Já foi enterrado?
- Foi não. Por isso vim aqui. Encomendamos o caixão. Entregaram ele torto, tortinho. O véio ficou apertado demais. Ele merece respeito na hora de morrer. Vim fazer uma queixa...Ah se o véio estivesse vivo.
- Claro, filho. Claro, seu avô merece.

Ah, sêo Januário. Que mundo é este no qual não temos nem direito a um caixão onde podemos nos revirar de raiva?...

Ps: no post anterior, a obra em referência é "1984" e não "1986". Perdoem-me!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

E SE MORRESSE MINHA ÚNICA CERTEZA

Acordei há dez minutos. Achei que tinha babado de sono sobre as páginas do meu exemplar de "1984", de Aldous Huxley. Era suor, na verdade. Do estresse provocado pelo pesadelo do qual eu ainda me recuperava.

Impressionado pelas páginas daquele livro, eu submergi dentro do fascismo engendrado pelo enredo. Mas com contexto diferenciado. Se um sonho pode lhe interessar, aqui vai o meu. Ainda da estirpe policial, vi-me envolvido com um novo tipo de crime.

Eram dias distantes do sistema opressor retratado por "1986". Naqueles dias, todo cerceamento às liberdades individuais fora extirpado. Deu-se um ponto final à estrutura que limitava os direitos dos homens ao extremo.

Nosso aparato repressivo lutava, com toda sua força, para reprimir um inusitado comércio, refugo dos anos de uma intervenção eugenista da engenharia dos gens.Traficava-se conhecimento de engenharia genética, catalisado na droga conhecida como eternum. Que consistia em um produto capaz de revitalizar todo o indivíduo, dando-lhe o fado da vida eterna.

A droga fora proscrita anos antes, a pedido de seu próprio criador. Em troca do silencio sobre seu trabalho, ele ofereceu o antídoto à sua criação, que nada mais fazia do que conceder a mortalidade a quem de direito. Dilemas do ano de 2036.Afirmou que trocaria o segredo pela própria liberdade. Que lhe foi concedida. Mas sua vida acadêmica era o esconderijo de sua vaidade. E foi nela que depositou o êxito de sua experiência com o eternum, em desacordo com o que acertara com a polìcia - de silenciar sobre a droga criada.

Em busca da liberdade de científica, acadêmicos circularam em grupos restritos, de outros acadêmicos, a fórmula de recomposição orgânica. Os primeiros acadêmicos firmaram e respeitaram o pacto de guardar os segredos do estudo sobre a vida eterna. E alguns decidiram fazer do acautelamento do segredo uma seita...o círculo dos eternos. E assim, seguiam seduzindo escolhidos, dentro e fora da academia, para um equivocado grupo de iniciados, cujo início também tornou-se fim.

Despertei para o problema ao conhecer um eterno. Uma pessoa normal, a um primeiro olhar, mas cuja voracidade despertava se,direta ou indiretamente, lhe questionavam a transcendência da vida. Uma humildade de discurso e de postura se punha por terra, para que se desvelasse a escadaria da soberba do alta da qual vociferava diminutivos contra os que criam apenas que na vida se vive e se morre. A missão da policia passou a ser evitar que a sedutora proposta de vida eterna alimentasse o círculo dos eternos.

Chamava a atenção que a nova classe de usuários/traficantes de eternidade elegessem como seus hospedeiros as pessoas mais jovens. A vida eterna era uma oferta aos que sequer conheciam a vida como, até então, ela era. E o que seduzia jovens até o círculo da eternidade? Foi o que procurei descobrir quando tive a missão de me infiltrar no grupo. Os primeiros contatos com a seita me deu a resposta existência de um mito tão caro à cultura ocidental: vaidade sedutora dos vampiros.

Diante da busca pelo eternum vi que a mitologia do drácula e toda sua simbologia sedutora nada mais são do que uma vestimenta de sobrevivência de nossos instintos mais encrustrados para atrair sangue e esconder o peso da eternidade. E o que eles caçam no calor do sangue é um motivo para oferecer aos homens (que são nossa racionalidade) justificativa para que suas vidas sejam ceifadas e, finalmente, encontrem um fim. Só que homens precisam de vampiros como Dráculo necessita de sangue. Apenas uma tergiversação...

O fato é que senti ter ultrapassado a parte inicial do processo de infiltração, depois de um charmoso contato com uma doutoranda de Economia. A confiança necessária para entrar no grupo eu tinha, graças àquela moça, a porta de entrada para umas sete vidas que buscaram se perpetuar.

- Eu vou levá-lo a uma reunião. Você tem o perfil que querem. Mas quem decide é a família. Não eu. Preciso dopar você para não decorar o caminho. Só na primeira semana. Depois...rs.

Era um risco. Infiltração sempre é risco. Aceitei.

Quando acordei, estava no mesmo local onde marquei para encontrá-la.

- Por que não fomos? - Quem disse? A eternidade não é uma viagem simples. Há que merecê-la. Acho que a mereceu. A eternidade começa com um sonho. Estamos aqui...no seu sonho. Acorde para seu sonho de eternidade. O resto é obra do tempo. E, quero que lembre-se: a eternidade começa com um sonho. Ah...saiba também o que todos nós descobrimos. Que ao se ver uma foto, nós vemos o tempo. Não o passado.
Quando direcionei minha mão para pegar o gola da enigmática eterna, deixei cair meu grampeador.

Acordei do meu pesadelo regado a Huxley. E preferi não dormir mais, por via das dúvidas.