
- Oi, pois não?
- Alguém me segue...
- A senhora sabe quem é? Sabe se teria motivo para isso?
- Sei. É o meu passado.
- Algo que a senhora fez?
- Não. É tudo o que fiz. Vivi de forma intensa. Muito intensa. Agora, minha imaginação esgotou-se. E não consigo mais agir de forma natural. Tudo é sempre a mesma repetição de algo que já fiz. E sempre que eu faço, igual, um senhor alto, belo mesmo, de uniforme da Transbrasil, surge para me levar à minha casa. E lá, enfrento a luta feroz pela minha vida, dar-lhe significado ao ser confrontada com a ideia de que viver é o duelo, dia e noite, para sorrir depois de fazer as mesmas coisas que gerações e gerações fizeram da mesma e repetida forma, apenas mudando de traje a cada representação.
- Um comissário de bordo da Transbrasil?!
- Não sei se o senhor a conheceu. É uma companhia aérea que desapareceu. Foi nela que viajei de avião pela primeira vez. Lá, fiz amor pela primeira vez, dentro do banheiro apertado de um avião, na época em que as pessoas levavam garfos e facas de metal que eram usados para comer.
- E o primeiro homem, suponho, é o mesmo que vai encher o saco da senhora...?
- Sim, ele é o meu passado. E reapareceu. Eu fui buscá-lo, na verdade. Dentro de uma cabine de um boeing da Transbrasil, envelhecido e empoeirado no pátio do aeroporto de Brasília.
De fato, algumas aeronaves da Transbrasil apodrecem, hoje, na pista do aeroporto, em Brasília, esperando sabe-se lá o quê...Uns poucos tipos esquisitos visitam o local como se fosse um museu, onde os artefatos de visitação são suas almas comprometidas em visitar um canto de passado feliz.
- Fui lá, entrei, consegui invadir um dos aviões, sorrateira e chamei pela alma daquele que me fez rir da vida, dentro de uma cabine de avião, a não sei quantos mil metros de altura. Foi lá que eu decidi a jura de nunca, nunca, me permitir fazer nada comum, ser o comum das pessoas, sob juramento de, não sendo assim, poder ser castigada pela vida como ela quisesse... agora, quero me livrar da minha jura, do meu passado. Quero vida nova, viver de novo, viver do novo! Me ajuda?
É, outro ajuste de contas no meu balcão. Mas, de repente, silêncio. Um gesto lento de cabeça inclinando-se, até uma postura cabisbaixa. E mais silêncio.
Eu conhecia aquela mulher. Em um plantão ela havia abordado um colega meu. Depois, voltou dizendo-se apaixonada pela acolhida dele. Passou a segui-lo pela rua. Não como um fantasma. Mas sim um ostensivo tormento. Quase o enlouqueceu. A diferença entre as pessoas erradas e os fantasmas e as pessoas é que os fantasmas aparecem depois da loucura. As pessoas erradas, antes.
Quando percebi, ela estava me olhando com afeto. E carregada dessa expressão, saiu. De braços dados com o senhor de uniforme de comissário da Transbrasil.
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