Código html Google estatísticas

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

QUANDO O AMOR TARDA, É COCEIRA


O título acima soa de gosto duvidoso. Proposital, garanto. E nada mais, reforço a garantia. O amor rivaliza com todo e qualquer tipo de garantia. Mas, sobre o título, ele vem da narrativa das seguidas tristezas de dona Minervina. Hoje, uma senhora, das frequentes em sermões em templos acanhados e discursos febris. Mas que guardou enquanto pôde um segredo que lhe carcomia as entranhas todas as manhãs.

Dona Minervina sempre se dispôs a dar amores a Belarmino. Desde o dia que se conheceram em Murais do Beco, cidade interiorana, mas de avassaladora vida boêmia.

Em já distante dia de mormaço, estava cedo dona Minervina de prontidão na janela, a fugir do segredo que lhe amargurava. Foi quando viu descendo, faceiro, o Belarmino, de retorno do baile tradicional das segundas-feiras de Murais do Beco. Zélia Olivinha, que sempre se comprazia em testemunhar o despertar de testa suada da dona Minervina, que precisava do ar fresco da manhã para acalmar ânimos, jamais pensou que daria em casamento aquela cena safada de entrega da vizinha de frente ao transeunte quase desconhecido de retorno do baile. E deu. Com véu, grinalda, e um respeito duradouro entre Belarmino e dona Minervina. Que tantos anos depois, na condição de vendedora de iguarias comercializadas dentro da delegacia, surgiu no fim do meu turno.

- Vim dá seu troco.

- Ô dona Minervina, bobagem. Fica para a senhora. Não tinha a menor necessidade de vir aqui, ainda mais tão tarde da noite, de madrugada.

- Olha bem, fiii. É tarde não. É cedo. Bem cedo.

E não é que o arrebol estava se engraçado mesmo com as nuvens que se arrastavam pelo céu desde o fim da noite?!

- Cedo, fiii. E essa véia aqui sabe o que o calor que se chega junto do sol.

- Ah, mas o sol de manhã é fraquinho...

- Num é calor do sol, é calor da vida. A véia foi praguejada a sofrer de calor toda manhã.

- Ué...

- Pois é, fiii...Enquanto tem ente cabando de sonhar, to eu, desde sempre, com as canela estirada, e um coração que bate feito coice de mula. Os oios tudo esbugaiado. Eita coceira, fio. Ninguém num vê não. Só o Belarmino me pegou assim, de jeito, disprivinida, e deu na doideira que deu. Quem mandou aquele besta me cruzá caminho longo di manhazinha?! Eu é que peguei o safado de jeito. Hehihi...Depois, casamo. Por querência dele e de meu pai. Eu já sabia que tava condenando o pobre diabo. Mas num tive coragi de arrostar os dois.

- Casamento pode ser bom...

- Não se a muié é carcomida pela minha praga e o danado do marido tem sono atrasado.

- E ele tem?

- É duas ou três da manhã quando o estrupício dormi, fii. É sono de homi do mundo. Quando os calores do sol atacam a véia aqui, Belarmino é defunto.

- ...

- Nóis nem tem, fii. Junto...E eu inté que queria que ele fosse para a bagunça fazer um. Num vai, me jura respeito e que num vai caçar cunversa na rua. E de manha, quando eu tento caçar cunversa dentro de casa, o difunto é mais difunto que nunca.

- Que coisa...

- No cumeço ardia, depois duía. Cum tempo, virei gente. Com dor de gente, vida de gente. Deixo a vida correr todinha. Cedinha, cedinha e sei que dispois vai imbora.

- Mas, dona Belarmina, não existe outro jeito?

- Jeito, jeito tem. Correr mundo inda cedinho e deixa nas pegada da vida o calor que era de Belarmino.

- Pelo menos, vocês se guardam um para o outro. A senhora sabe que ele lhe tem amor.

- Amor que tarda, fii, num é amor. É coceira, di certo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

TEU HÁLITO




Queria chamar de orvalho eu de mim em sua boca. Só uma imagem vazia preenche o seu nome esquecido. Minha ode vasta virou imagem. Isso, isso e isso...

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A AMBIGUIDADE DO PUNHAL


Hoje, quando apertei os olhos em reflexo ao sentimento doído, escorri a lágrima do entendimento. Da incompreensão contumaz que deflagrou tantos de nossos atritos, veio iluminada a imagem de que um punhal nos mantinha tal e qual o cordão umbilical o faz entre ventre e filho.

Agora, sim, é como ter um paradigma definitivo para tantos de nossos desinteresses, ou a razão para a superlativa valorização de pequenas desimportâncias. Gritos abafados, rancores em comentários ácidos ganham a minha maior simpatia. Um punhal os redimiu. O sorriso tem o brilho de uma lâmina.

Mas o meu maior orgulho é saber que todos os anos passados houve vitória sobre vitória. Porque à dores lancinantes sobrevivi. Não quando o punhal que segura, firme, pelo cabo, escorregava em minhas entranhas. Nem quando, unidos mais que nunca, você, firme, segurou o punhal e, em sacrifício, dispunha do aconchego do meu corpo. Não, mas era assim que eu pensei dia após dia. Mas sobrevivi, vejo agora, a cada dor que se seguia aos seus egoísmos de me exilar da lâmina fria do punhal que nos torna um só. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

MEMÓRIA IN MEMÓRIAN

Ontem, vi sua foto. A lembrança que tenho de você protestou! Em um outro destes diálogos ciclotímicos que tenho na vida, a memória que cultivo dos raios de luz em torno do seu rosto gritaram como quem é pego em uma fraude.

A rainha ficou nua. Não desnuda como nos entalhes sensuais de nossos amores construídos em minhas lembranças. Ficou sem os mantos que irretocáveis memórias de dias felizes e lúbricos lhe haviam consagrado. Girassóis de pétalas e talos ressacados despencando dos seus cabelos.

E a memória gritou. Fundo de garganta estuprado pelo grito da vergonhosa dor de quem conseguiu manter apenas os saltos, apesar das pernas amputadas. Luz sobre quarto escuro, perfumado, cujas essências deixavam em planos secundários morcegos e traças de voos silenciosos, soturnos.

Aí de mim, foto, que fez da poesia redentora - a cada resgate de lembrança - um epitáfio. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

DE LOBOS E COIOTES

Dois predadores corroem-me o ventre que gesta meus esforços literários e o berço das almas de minhas criações. Debatem-se, maduros, contra a censura que os encerra dentro das minhas vontades de redifir, escrever, até que, enfim, sou forçado a libertá-los, contando a história deles. Vencido, não me resta outro que não o caminho da prosa rendida. Pois conto, a partir do texto de hoje, a história de Lobo e Coiote.

Mas não sem antes um alerta. Isento-me de assegurar ao meu leitor um fim. As duas feras que se precipitaram na investida contra minha censura, a elas e apenas a elas cabe cuidar da história cujo início me arrisco a contar. Mas, quanto ao final, quem os pariu que devidamente os embale.

Assim sendo, passemos ao texto. O Lobo e o Chacal são neste momento de minha memória dois meninos. Isso, no trânsito da infância para a puberdade. Inseparáveis. Complementares. Se o Lobo afiava suas garras nas aulas de karatê, era no treino de judô que o Coiote desenvolvia seu senso bélico.

Todavia, jamais chegaram a acordo em um tema: qual o pai com maior bravura.

Filhos, respectivamente, de um Delegado de Polícia e de militar da Marinha, ambos aposentados, só na imaginação e exagero de cada um deles cabiam as façanhas descritas.

- Meu pai enfrenta os comunistas. E na mão. Se precisar, esbravejava o Lobo.

- Isso não é nada, meu pai dava porrada nos comunistas e nos alemães. Você não sabe, mas tem um monte de alemão escondido no Brasil. Meu pai sabe onde eles estão. Quando quer, vai lá e bate só para treinar luta, retrucava o Coiote.

Apenas em acalorados debates sobre as graças paternas se punham um contra o outro. Só. Nas demais situações, dava gosto ver a união dos dois socando os “inimigos” das quadras próximas (a infância transcorreu em Brasília, onde quadras podem, por analogia, ser comparadas às ruas de outros estados).

É assim que apresento a promissora amizade de Lobo e Coiote, amigos cuja amizade parecia não se bastar no espaço de 24 horas. Escola, turma, quadra. Tudo era compartilhado nessa preciosa amizade.

Ou quase tudo. Um único segredo foi preservado para manter íntegra a união entre eles.

Depois de voltar de seu dentista, o Lobo ia chamar seu inseparável amigo. Ao aproximar da entrada onde morava o Coiote, deparou-se com uma cena que lhe impediu a progressão: era o pai de seu estimado amigo, segurando pelo pulso uma criança e dela arrancando trocados de sua mesada. Sob que pretexto, a nossa assustada testemunha jamais se propôs a descobrir. Os anos, porém, dariam respostas bem mais preciosas a cada vez que a memória lhe trazia o episódio à cabeça (continua...)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O LOBO E O MAL

Enquanto o texto passei alheio à minha inspiração, por searas jamais dantes alcançadas, deixo a voz do "Lobo" sacudir tímpanos...

domingo, 6 de novembro de 2011

CRISE

Difícil  é o esquecimento daqueles que nos perfumaram a memoria. Dias mais, dias menos, sobrevive o mecanismo que frauda a percepção das coisas mais elementares e, então, caímos mais uma vez na armadilha de achar que o perfume anuncia uma chegada. Que na verdade está adiada para sempre.
Então, a fragrância retorna ao dilatado frasco das recordações inofensivas. Entra para a lista do breviário não mais das alegrias insistentes, mas das lembranças deturpadas.
É por isso que o que não é ainda passado apela a uma precoce ressurreição.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

PARADO! QUIXOTE!!!

Se a tentativa é boa, mas o resultado ruim, o que há de se dizer da obra? É o resultado ruim de uma boa tentativa ou uma boa tentativa com resultado péssimo? Dúvida que me assolou a ver o filme “Federal”, com Selton Mello. História de um agente de polícia federal que migra sua vida para os quadros da PF. Não, não espere de mim uma resenha. Apesar de encontrar qualidade na tentativa do cineasta que realizou o filme por ter se dado ao trabalho de entender o conflito da imersão de um cidadão “comum” nas fileiras da repressão oficial.


Não existe possibilidade de realismo ao se lidar com o real que se despiu de toda a fantasia. O real, nu, cru. E a vida de um policial é assim. Tão mais se tenta reproduzi-la, mais longe se está do que seja o conflito de quem combate, na ausência de fantasias, a madrugada incessante do crime.
Quer saber? A beleza de uma obra está no que ela não diz. Certa vez, vi uma análise do filme “Tubarão”, de Steven Spielberg. Trata-se de uma aula de cinema, porque o suspense se faz mais no clima do que pode acontecer do que por aquilo que efetivamente ocorre.

Pois saibam: a fantasia se faz no piscar de olhos. O momento em que o mundo fictício estabelece interlocução com a morada idílica, onde repousam musas, inspirações e antevisões, tecelões de nossos sonhos e, de quando em quando, a presa de uma pena artística qualificada.

Justifico minha tese, com cara de madrugada em plantão de delegacia, com o filme que acabo de assistir porque deixaram em cima deste meu balcão: “O Homem da Mancha”, de Arthur Hiller, com Peter O´Toole e Sophia Loren.

Nunca achei que a grandeza do “engenhoso fidalgo” pudesse ser dissecada por imagens e diálogos do cinema. E, para a minha surpresa, creio que o cineasta também. E , por isso, o filme é apenas um jogo entre a obra e a imaginação. Ele usa o mágico piscar de olhos diante da fantasia e nos convence a fazer uso dela. É obra-prima e ponto! Ao contrário de “Federal”, que é um fragmento narrativo coerente, mas nunca uma obra – porque não está em todos nós, como o está o Quixote, vejamos monstros, vejamos apenas moinhos de vento.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A FÚRIA DO SOM


Charles Parkinson. A sabedoria de rua é capaz de prodígios como um apelido assim. Um homem esquizofrênico, cujas vozes retumbantes em sua mente ditavam fraseados musicais, não palavras. Sons que eram apresentados aos transeuntes da rodoviária central de Brasília pelo sujeito, de aparência mulamba, graças a um pente e um pedaço de plástico. Da junção dos dois materiais, ele fazia o necessário para emitir os sons agudos, que, de longe, as vidas apressadas reconheciam e já tinham como parte da rotina, da sempre procuraram se esquivar.

O nome completo, real?

- Não tenho a menor idéia. Sei apenas que se chama assim, Charles Parkinson. Na verdade, os outros o chamam. Pelo que sei, nunca ouviram sua voz. Apenas os agudos que consideram insuportáveis.

- Assim fica complicado, mas eu registro.

Raro em uma delegacia, a figura de um maestro - ainda mais em busca de um mendigo. Mereceu um tanto a mais de meu esforço.

- Mas o que o senhor está fazendo atrás desse sujeito? Pelo que soube, tem jeito não! Já tentaram tirá-lo da rua. Uma senhora chegou a levá-lo a um abrigo, mas ele é viciado. Ela foi a única com quem conversou. Diz que ouviu dele que só drogado perde o medo das vozes. Quando perguntou pelas vozes, ele ouviu dele um som esquisito, tocado com o pente.

- Aquele som esquisito, não tem nada de esquisito...

- Com todo o respeito, maestro...

Na minha frente, a regente da Sinfônica da cidade deu a dimensão de suas angústias ao tentar explicar o que encontrou de tão significativo no que a maioria de nós considerava apenas um toxicômano trôpego.

- Olha, um músico americano foi me visitar. No caminho, disse que viu um sujeito, sujo, maltrapilho mesmo, tremendo os braços, com certeza sofrendo do mal de Parkinson, e que segurava o tal pente com um plástico. Eu já tinha ouvido sobre o sujeito. Como folclore urbano, um chato. Mas nunca do ponto de vista que ele, meu amigo, me apresentou.

- ...

- O músico ficou fascinado com o que ouviu...eram construções musicais riquíssimas, complexas, que o ouvido mediano não é capaz de entender. É brilhante. Eu preciso achar esse rapaz.

Naquele instante, minhas mãos dedilharam o teclado e preenchi a ocorrência de desaparecimento de pessoas. Mas não me desliguei das explicações. Charles Parkinson era abençoado por um dom e, provavelmente, era devastado pela própria dádiva.

- Esse sujeito pega canções que estão por aí e faz improvisos muito velozes com a linha melódica.

De repente, o maestro empunhou um instrumento para que ouvíssemos a gravação, mas, em ritmo desacelerado. O que revelou uma precisão de notas e um talento raro.

- Ele propõe frases muito avançadas e extremamente sofisticadas, lógicas.

- E tem um bocado de gente que vem aqui dizer que ele toca tudo errado.

- Ele toca certo demais. Não podemos perder isso.

Não poderíamos. E perdemos.

No plantão seguinte, soube que o corpo de Charles fora encontrado. Uma dose a mais do veneno do crack.

Um viciado que costuma conseguir as pedras da droga onde Charles as comprava também disse que o viu ser surrado, enquanto tocava uma música muito esquisita. Não quis dizer se foi polícia, traficante, transeunte. Só disse que lhe arrancaram o pente e rasgaram o plástico, o que o deixou em tal crise de abstinência, como jamais havia presenciado entre os drogados dali.

- Depois, ele encostou numa árvore. Começou a repetir “a música parou”, “a música parou”. Ele tava com umas pedras. Usou e riu. Riu e disse sem parar, feliz, mais um tanto de vezes... “a música parou, a música parou”. Morreu tremendo, mas feliz. Tinha até uma voz bonita...nunca tinha escutado. Ele devia ter falado mais é tocado menos.

A Charlie Parker, in memorian

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

UMA VISITA DE BORGES

By Chema Madoz

By Chema Madoz


Fechei o capítulo das obras completas de Jorge Luís Borges. Não queria fazê-lo. Estava no ápice do conto “O Outro”, do mestre argentino. Fechei, ainda assim, o tomo depois de ser interrompido, segundos antes, pela frase:

- Ainda demora...



A insolência que minh´alma barnabé havia percebido dissolveu-se na expressão familiar de quem sentava ao outro lado do balcão.

- Não, não se incomode. Não era uma pergunta. Era uma afirmação. Ainda demora. Você está ainda do lado que faz as perguntas. Eu estou do lado que tem medo das respostas. E, por isso mesmo, foge das perguntas.

Houve dupla perplexidade em mim: ao não me questionar sobre a situação e sobre a familiaridade com meu interlocutor. Mas uma familiaridade nada cúmplice, incômoda. Algo como se minha alma já não fosse apenas minha.

- O senhor está cansado?
- Você correu demais. Aí, cheguei aqui cansado.
- ...
- O que quer então?
- As mesmas perguntas de sempre. Certo, de qualquer forma, só não serão as mesmas deste lado do balcão.
- Posso lhe servir algo?
- Tudo já me foi servido. Meu tempo é o da digestão. Você correu demais e sorveu demais.

Acarinhei o livro de Borges...folheei as páginas de “O Outro”.

- O espelho...o espelho...
- O lado quebrado do espelho. Não há vaidade que resista a ele, nem pó que não se abrigue em suas fissuras. Só um espelho quebrado pode ser fiel.

Não resisti. O meu outro, diante de mim. Eu, adiante!
Com um gesto nem majestoso, nem reverente, apenas simples, levantou-se “o outro”. Não me coube assentir, proclamar ou dissentir. Levantei-me. Deveria ceder meu lugar. Mas acudi-me do relógio. Era cedo. Argumentei...

- É cedo ainda.
- Eu avisei, ainda demora, mas sempre chega.
- Estamos ainda na metade do meu turno, de hoje.
- Não vi aqui para que você passasse o turno. Por ora, já tenho do que me alimentar.

Meu “outro” foi embora, justo quando estava convencido de que este enredo proclamaria a era de sua ascensão ao final. Foi-se, sem uma resposta. Sem uma pergunta. E sem o erro de inspirar uma filosofia qualquer. Só um gosto amargo de incerteza arrastou-se no céu da minha boca. E uma frase, rascunhada, com a minha caligrafia... “ainda há tempo”. Bem no meio do balcão. Do nosso balcão.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

VOO EM SOLO



“O que alimenta Peter Pan?”

A pergunta me veio à cabeça enquanto os olhos vidrados, de sono, e ressequidos, da seca, acompanhavam o flutuar melífluo da brasa incandescente rumo ao meu braço. Extático, vi no ponto de luz flutuante as asas da pequena fada que acompanhava as narrativas de Peter Pan, o garoto relutante ao tempo.

Peter é o nosso medo da morte. Constatação óbvia. Mas algo mais me veio à cabeça. Ele tem enorme dificuldade de fazer de sua sombra uma seguidora. Foi aí que o bailado flutuando da centelha me levou à conclusão que divido. Peter voa e vive às voltas com problemas com sua sombra. Não deixa rastros, na maior parte do tempo. Aqui, neste plantão, do alto do meu cansaço, acabo por concluir que amadurecer é deixar rastros.

Vestígios que são uma trilha para nossos substitutos, herdeiros, seguirem alguma estrada traiçoeiramente menos obscura. Mas, ainda sim, uma estrada.  A pista do que seja a vida pelos rastros de quem, a altura da descoberta, só pode responder o que seja a morte.

Conjecturei. Especulei. E veio a dor, leve, mas dor. Da centelha que encontrou na pele do meu braço o propósito de sua vida: apagar sua luz no corpo vivo que elucubrava. Doeu ser queimado.

O que ardeu minha especulação. Ligeiro, constatei que o rastro do Quinto Noturno é ser o redator das crônicas reunidas do cotidiano que falhou. Falhou pelo acaso, falhou pela maldade alheia, falhou pela droga que vicia. Colho todos os rastros do equívoco que alimenta a crônica policial e faço deles meus rastros. Enquanto dura a minha jornada.

E tento viver mantendo minha sombra ativa, ainda que no escuro. E tento sobreviver, mantendo nos chão os pés que podem querer trilha a estrada dos caminhos mais fáceis – na ilusão de que se pode, voando, fugir do tempo.

Peter, arde a dor pequena da sua Sininho. Que, enquanto latejou, foi luz admirável, mas fugaz. Quando se confrontou com a luz tensa de uma vida, a minha vida, transferiu energia; não, luz. Tenho visto e consolidado rastros demais para ter a leveza da sua pretensão da juventude eterna, Pan.

Por isso, na madrugada de mais uma noite, vou colhendo rastros para semear histórias. Quero crer. Porque ser crente é coisa mais de maduro do que de jovem. Jovem tem certeza. Tanta certeza que acredita que não duvida que voa, quando acha que está voando , nem que pode se desvencilhar da sombra, quando acha que sua sombra fugiu...

Velho já o suficiente, nem tive tempo de me responder do que se alimenta Peter Pan. Não será dos meus rastros indigestos. Digo com alguma pouca certeza.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

MISTÉRIO QUITADO



Quando a vi chegar com um caco de farol e esquerdo olho roxo, achei que se tratava de batida de carro.

- Eu quero é saber do desgraçado que chutou a lanterna do meu carro. Um covarde que ainda me enfiou uma porrada na cara.

A candura também pode assustar. Ainda que seja na forma de uma pequena de cabelos curtos, voz roufenha e um intrigante olhar verdejante. Se o caco de farol chamou para si meu olhar, em um primeiro momento, já em uma segunda apreciação, foi a cópia de “Kind of Blue” – obra-prima de Miles Davis – que ela trazia no braço destro que me fez pensar a respeito do gosto da pequena.

Enquanto pensamentos vagavam nas diversas hipóteses da história daquela mulher, quase todas em conluio com minhas fantasias, descobri que pouca coisa nela dava alguma pista de quem ela era na realidade.

- Prefiro não me identificar. O que coloquei aí é suficiente, no B.O,é suficiente.  Quero só registrar o acidente. Sei que não fazem nada com isso. É estatístico!

- Mas o que tem aqui não presta nem para estatística. E esse olho roxo?

- Cara, é meu sapatinho de cristal...nada de ocorrência sobre isso.

- Parou, parou. Minha obrigação é entender se houve crime ou não.

- Eu conto a historinha, para você dormir bem hoje, mas sem dizer quem é mesmo a santinha aqui.
Plantão é isso. Delegacia é portão de desembarque de problemas. Último recurso do desespero. Claro que, assim sendo, nossas atitudes não são o que pode se chamar de sensatas.

- De acordo. Conta logo, princesa. E redijo sua ocorrência como se fosse comunicada por outra pessoa, que não tinha os dados suficientes.

A centelha da oratória cresceu no centro daqueles olhos verdes. Antes da delegacia, seu paradeiro era uma dessas boates alternativas (!?). Frequentadas por homens e mulheres que gostavam de homens e mulheres. Assim como em todas as situações de nossa cinderela, ela vivia de esconder a identidade nos casos fortuitos que admitiu colher pela vida.

O fetiche era deixar uma pista sutil para testar a capacidade de quem se dispusesse a descobrir seu paradeiro e identidade. Era a forma de tentar atrair uma forma verdadeira de amor. Que até agora não aparecera.

A ausência de identidade tinha, ainda, uma segunda explicação. Todo o jogo era monitorado pelo marido, cujo prazer se alimentava de histórias entre desconhecidos e sua mulher. Ele a levara à boite pouco convencional. Ele a resgatara , farta, do encontro com dois homens que a devoraram continuamente por doze horas seguidas – horas que renderam semanas de luxúria entre os dois. E essa era apenas uma dentre vários contos. Mas, ele tudo controlava. E, há duas semanas, sua lascívia era manter uma relação a três.

Ela fora isca. Atraiu uma mulher que, apesar da beleza do rosto, tinha o corpo carcomido por um acidente com fogo que lhe deixou enrugado cerca de 80% do tronco. Mas o corpo consumido incendiou o coração do marido. Que insistiu cada vez mais nas mesmas aventuras. E, de vez em quando, deixava-a fora dos encontros já então ardentes.

Em busca de uma solução, foi à mesma boate disposta a seduzir nova parceira e entregá-la de presente ao marido. Há uma semana.
Dentro do santuário dos pecadilhos, notou mais do que afetos incomuns, aos olhos pudicos da sociedade. Deixou-se encantar pelo cenário sem regras e a desenvoltura grotesca de homens dançando com roupas mínimas. Apesar do ambiente francamente gay, eles pareciam querer nas danças e gestos deixar claro a que regras sexuais submetiam-se.  

- Sempre senti tesão por paradoxo, desde a palavra, até o os olhos estrábicos que encontro na rua.
Eis, então, que a musa anônima se apaixonou por um Gô-Gô-Boy. Que nunca lhe revelou o nome da pia batismal. E que a levou a, no dia em que apareceu diante do meu balcão, ir até a boite mais uma vez, só com o marido.

Em pouco tempo, para seu desespero, marido e Gô-Gô-Boy estavam engalfinhados dentro da boite.

- Eu fui buscar um refrigerante. Era para encontrar o cara lá. Burra, demorei mais que devia. Meu marido foi me procurar. Ela estava eu, com o Gô-Gô-Boy sujando minhas orelhas de palavras e saliva.
O marido, acostumado ao comando, achou que se tratava de um flerte incômodo à esposa. Investiu sobre a massa de músculos que era o dançarino de boate.

- Foi quando ele deu um soco. O outro sujeito, que também não sabia do meu marido, revidou. Sei lá o que me deu: entrei na frente. Resultado é meu olho deste tamanho. Depois da merda feita, o dançarino me ajudou a chegar ao meu carro, com a ajuda de seguranças (tínhamos ido no meu carro, nem sei como meu marido voltou). Não falei que meu marido era meu marido. Disse que era um louco que me seguia sempre. Meu marido ainda acertou a lanterna do táxi na hora que estava indo embora. Tô fudida!

Se não houve agressão deliberada a ela, pouco eu podia fazer. Ela admitiu o gesto involuntário.

- Mas, depois de fugir, eu fiquei esperando o Gô-Gô-Boy sair, na esquina, até uma meia hora. Ele saiu de lá com uma puta! Mas anotei a placa do carro.

- Daí o registro de acidente?

- Sim, eu não sei nada do sujeito. E eu que sempre me aventurei no silêncio, quero descobrir onde ele está, quem ele é. E só tenho uma placa de carro e um hematoma como pistas.  Qual o nome dele, porra?! Eu preciso...
Fiz a ocorrência. Não dei os dados da placa. Eles não existiam para o sistema. Mistério com mistério se paga.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

AMOR DE PLACEBO

...Ciúme que corrói este seu olhar, detido tanto tempo para um de meus olhos. O que há lá afinal que não se vê no outro...?


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

TRISTEZA EM DEGRADÊ


Semírames chegou com sangues nas mãos e algemas no punho. Assim fui apresentado àquela senhora, de pouco mais do que vinte anos, apesar de aparentar qualquer coisa além dos 50. A saliva densa, branca, cobria os lábios. O choro à exaustão deixou-a a beira de desidratar.

Além das mãos, a canela estava envolta em uma camada de sangue e barro. O barro vermelho do cerrado. Levou, de repente, as mãos ao rosto. Não como os infindáveis maltrapilhos que eu me acostumara a ver. Ela escondia o rosto da vida. Pela primeira vez, achei que a cela tinha chance de dar alento a alguém mais dos que àquelas pessoas que vêem no confinamento de presos alívio à sensação fugaz de segurança. Semírames encolheu-se no choro irrefreável no fundo do corró, apelido que as celas têm nas delegacias.

Não cheguei a conhecer a voz de Semírames. Nada além de um gemido gutural saiu da garganta, urros colossais que despertaram a revolta em outras presas. Sim, havia mais duas carroceiras presas por não terem pagado pensão alimentícia. Justiça consumada.

Bem e mal precisam de dignidade para coexistir. Samírames era apenas dor. Sua dignidade era o um rio perto da estiagem. Duas agentes levaram a presa ao banheiro. Deviam revistá-la. Era Semírames recebendo a atenção do Estado. Que veio na forma de dois dedos descuidados lhe vasculhando as intimidades. O que fez o urro incessante afinar-se, assumindo ares de gemidos, estertores de uma fera alvejada de morte.

E Semírames morreu.

Nem de morte matada, nem de morte morrida. Apenas virou as costas à vida. Deixou que o corpo vagasse quando e onde quisesse. Se a vida lhe tirava de vez tudo, ela queria ser parede, virou-se em definitivo para dentro da cela, querendo mimetizar-se ao concreto.
Se Semírames nunca mais saiu da cela.

Virou reboco, concreto, que eu via em cada liberdade rompida que eu consumi, ao fazer justiça encarcerando; carcereiro de decisões que tinham o peso insuportável de minha consciência.  A cela ficou com uma cor qualquer cujo tom é Semírames.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

SÓ INTEIRO

Esqueci o perdão em cada esquina. A memória é rito de passagem ao perdoar, ressentir, superar. Que só existe quando memória e tempo se perdem diante do nada, esse acontecimento eventual que se diz a vida!

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

ENQUANTO NÃO CHEGA O ÔNIBUS

Vida, exercício singular, justo. Sempre: ferida ou cicatriz. Viver é contragosto coletivo, não cheira à essência idealista da harmonia.


sábado, 13 de agosto de 2011

SOCO DE VELUDO

A barbicha era a de sempre. Maltrapilha, rala, irregular. Não fosse a sobreposição anárquica de pelos brancos, nada lhe denunciaria a passagem do tempo. Apoiado no nariz adunco, um óculos redondo no melhor estilo trotskista. Poucos flagelos dos anos, suficientes, porém, para encorajarem meu teatro dissimulado, que me desobrigou de admitir que o tivesse reconhecido.
A cabeça baixa, olhos fixos em um destes jornais vagabundos usados para lavar dinheiro da politicalha inescrupulosa, e um passeio pela memória.  A busca por momentos de convívio com o ex-colega de trabalho que seguia, sem me reconhecer, em minha direção.
Um passado que trazia a lembrança de uma figura reticente. Eu sempre a lhe censurar, no íntimo, o acanhamento de ousadias, a palavra insegura. Se bem me lembrava, eu tinha convicção inabalável de que eram as minhas iniciativas as bafejadas pela sua escolha, as que ele queria barrar, sempre que eu ousava tentar algo. O que fazíamos? Investigávamos crimes contra a administração pública.
Eu queria mudar o mundo. O que significava prender metade de todos os que eu achava que roubavam. E eram muitos. Muitos...
Ele foi sempre a última versão dos relatórios que escrevíamos. E meu sonho de um mundo mais justo sempre era adiado por suposições temerárias e afirmações sem risco, nada categóricas, com as quais ele preenchias as folhas. Assim, eu pelejei dias e dias contra a cruz da inércia do meu parceiro.
Sempre tive a teoria de que crescem na carreira os que vão ficando ano a ano nos mesmos lugares, graças à submissão. Se a coragem lhes falta, sobra nos que não se intimidam diante do desgosto provocado por decisões equivocadas ou escusas. E sempre que eu refletia sobre esse tema, era aquele “Zé” que me vinha à cabeça segurando uma bandeira, com brasão da “Escuderia dos Omissos”.
Para meu espanto, ele ficou conhecido como Zé do Siso, porque era à sua consciência que os chefes acorriam na busca de orientações sobre como atuar de forma prudente em operações policiais. Entrava em sua sala, ouviam suas frases cheias de reticências e saiam arrotando exclamações. E o que era medo virou cautela; quem era covarde virou lenda. De longe, eu acompanhava a mística que se desenvolvia em torno do ex-colega. Que chegou ao status de intocável lenda...ou quase isso, entre colegas e chefes.
O tempo me martelou o juízo de forma eficiente o bastante para entender que covardia anda próxima à precaução, mas nem sempre se dão os braços.
E que somos sensíveis. Todos nós. Desde que nos falem o que nossos ouvidos vaidosos acolham como elogio.
- Cara, você aqui?! Virou plantonista. Dia desses, falei com o um colega que queria saber onde você estava.
- ...
- Mermão, gosto de você. Devia ter feito como você, que ganhou o mundo. Mas fui ficando, ficando. Quero é me aposentar. Bicho, virou uma merda. Ninguém mais trabalha com coragem. Você é um cara honesto. Gosto de você. Bom te ver!
Registrou a admiração. A ocorrência? Nem eu sei. Foi embora: decidido. E eu, bem, sabe como é, ainda não sei ao certo...

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

PSIU!

As flechas que miro em teu silêncio são carpideiras órfãs de um agosto e seu féu.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

PENSAMENTO FROUXO


Teus mamilos de aço, flagelo de sentimentos. Duas torres de afronta, ficadas em vasto mar de medo e arrependimentos. Enfrenta todos os mares só até que a maré realmente decida encontrá-la. Teu dourado é reflexo do sol. Somos chãos, tu és solo, também. Ainda que subas à altura da montanha, será caminho. Somos todos caminhos. Estendas a mão e nos tornaremos, no máximo, estrada maior.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

TEMPLO A VIOLAR




  1. O forro de meu desejo é o veludo, raro, em seu corpo. Costuro vagos itens de memória. Tranço em você pernas trêmulas de vontade. Construo o dia que sua retina estalará, ampla, sob domínio de um prazer de nirvana.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SOLILÓQUIO

Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse idiota, abriria muitas portas???!


terça-feira, 19 de julho de 2011

CULPA

Quando bateu o lado desprotegido do meu rosto, entre fragmentos de dentes, clamei à sua consciência um gesto de remorso; quando cravou suas unhas na pele vulnerável dos meus lábios, balbuciei, esforçado, uma frase que atenuasse o impulso de dilacerar; quando suportei no meu maxilar todo impacto do punho inoxidável, ao acordar, chorei. Porque não tive forças suficientes para encontrar um caminho de arrependimento em seu ventre.

sábado, 16 de julho de 2011

VENTRE PARALELO

Projetou-se, do escuro da entrada até a fronteira da porta, com os olhos vermelhos. Deviam estar marejados, há pouco. Não na minha frente. A farda que portava não lhe dava o direito. Além de militar, era pai. Como denunciava a carteira de estudante na extremidade do braço pendente. Parou diante do balcão, em pé, mas sustentando um corpo desfalecido. Achei que me apresentaria a carteirinha.

- Sou o pai da moça que morreu.
Ele trazia na frase a certeza que não precisaria, naquele momento, de uma identidade para se fazer entender. Havia apenas uma moça naquela situação. Não na delegacia. Àquela altura, no repouso frio da câmara gelada, o “podrão”, do Instituto Médico Legal.

Nunca houve frase justificável o suficiente para finalizar o silêncio que imperou. E ainda impera a cada segundo que tento fazer as palavras pousarem neste texto para dar vazão à história. Se a tensão freava tudo antes, o pai da vítima desconstruiu o cenário de crise silenciosa com a frase que me atormentaria desde aquela noite até hoje – e eu jurava que ela ficaria dentre a lista de frases que tememos ouvir, mas nunca são pronunciadas.
- Como foi? Você sabe me dizer como foi?

Eu sabia.

Quando o telefone tocou no início da tarde, parecia mais uma ocorrência provocada pelo excesso de uso de drogas. A rotina faz desse tipo de ocorrência um fato frio. Mais uma vez apenas a vida que se encerrava meio aos leitos e à fedentina de mofo de motéis travestidos de hotéis de quinta.
Ao chegar o local, nada da vítima. Havia sido encaminhada ao hospital em uma ambulância. Ao invés de vestígios que dissessem algo além do que esperávamos para mais um caso de overdose, a informação intrigante de que a ambulância tinha sido chamada pelo acompanhante da moça. Não é comum alguém alertar e fugir. Salvo se for uma testemunha, a quem convém o anonimato.

Com o final dos números e as letras da placa de um carro, cheguei ao dono do veículo. À dona. A surpresa é o fator essencial nas diligências policiais. E ela estava lá, dentro das palavras da proprietária do veículo que atendeu minha ligação.
- Deve haver algum engano, meu senhor. Eu estava dormindo. Meu carro está na garagem...estava...Flávio?! Fláviooo???? Só um momento, policial, estou ligando para...para o meu namorado...

(...barulho de discagem de celular)
- Flávio? Flávio, você saiu de casa?! Com meu carro, seu f...??!! Tem um policial aqui no telefone comigo, sabia?

Em meia hora exata, o tal Flávio deu as caras no meu plantão. Devia mais à namorada do que à Justiça. Só deixou a moça no motel depois da ambulância ter chegado. Prestou socorro.

- Ela que foi me buscar. Em Ceilândia. Disse que tava virada há três dias. Disse que ia pegar um carro pra nóis sair. Ela queria cheirar. Tava bêbada. Fomu pro motel, hotel, sei lá. Ela bateu as carreiras. Cheirei. Ela cheirou. Tentou cheirar. Logo de cara, quando meteu o nariz, o sangue pingou. Caiu durinha e se debateu, babou, babou muito. Espuma pra cacete. Chamei o SAMU. Esperei chegar e pinei! Minha mina ia me matá se soubesse. Ainda vou me fudê, ela já sabe.
O cara pegou o carro da namorada, foi cheirar com outra em um motel, a moça morre. Se queria ficar maluco, conseguiu.

- Queria saber como foi, você sabe, agente?
A frase do pai me tirou do insight.

- Sabe, agente, esta aqui é a minha filha.
Finalmente a carteirinha.

- Ela tinha uns problemas com bebida. Disse que ia parar. Fez vestibular. Educação física. Há três dias, fez a carteirinha de estudante. Veio me entregar. Não tive tempo nem de dar os parabéns. Tinha saído para comemorar com as amigas. Disse pra mãe que não esperasse. Ia demorar. Não sabia que horas voltaria...
Eram palavras ditas com rancor. Com o gosto azedo de um passado que talhava na boca e se pretendia cuspir. Enquanto a carteira em punho era um talismã, a sorte de um futuro que lhe adoçava as idéias, interrompidas, sem que pudesse desfrutar dessa sensação vaga que é ser, ou tentar ser, normal.

- Então, cana, como foi?
- Meu turno é o quinto. To chegando agora. Não sei como foi. E se soubesse, também não falaria.

Fiz um favor ao militar. Ele precisava odiar alguém. Por algum momento. Nesta profissão, à vezes é preciso se doar...

terça-feira, 12 de julho de 2011

ARGONAUTA ENGASGADO

Para cantar, basta ouvir. Mas não consegui ler a partitura da sua valsa desencontrada. Triste plateia a reter o aplauso. Tombo previsível. Fosso invisível. A ponte carregada de passos das falsas caminhadas tombou.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

LADEIRA ABAIXO, FIM DE FANTASIA

Desceu outra vez. Decepção. De novo, reconheço-a mais aprazível dos que das vezes anteriores. Tomou seu posto. Ação indigna. É o oposto do que fantasias de decadência e insultos na madrugada insone lhe haviam investido. Chegou: riso e simples. É seu todo o instante, desde o primeiro degrau.