“O que alimenta Peter Pan?”
A pergunta me veio à cabeça enquanto os olhos vidrados, de sono, e ressequidos, da seca, acompanhavam o flutuar melífluo da brasa incandescente rumo ao meu braço. Extático, vi no ponto de luz flutuante as asas da pequena fada que acompanhava as narrativas de Peter Pan, o garoto relutante ao tempo.
Peter é o nosso medo da morte. Constatação óbvia. Mas algo mais me veio à cabeça. Ele tem enorme dificuldade de fazer de sua sombra uma seguidora. Foi aí que o bailado flutuando da centelha me levou à conclusão que divido. Peter voa e vive às voltas com problemas com sua sombra. Não deixa rastros, na maior parte do tempo. Aqui, neste plantão, do alto do meu cansaço, acabo por concluir que amadurecer é deixar rastros.
Vestígios que são uma trilha para nossos substitutos, herdeiros, seguirem alguma estrada traiçoeiramente menos obscura. Mas, ainda sim, uma estrada. A pista do que seja a vida pelos rastros de quem, a altura da descoberta, só pode responder o que seja a morte.
Conjecturei. Especulei. E veio a dor, leve, mas dor. Da centelha que encontrou na pele do meu braço o propósito de sua vida: apagar sua luz no corpo vivo que elucubrava. Doeu ser queimado.
O que ardeu minha especulação. Ligeiro, constatei que o rastro do Quinto Noturno é ser o redator das crônicas reunidas do cotidiano que falhou. Falhou pelo acaso, falhou pela maldade alheia, falhou pela droga que vicia. Colho todos os rastros do equívoco que alimenta a crônica policial e faço deles meus rastros. Enquanto dura a minha jornada.
E tento viver mantendo minha sombra ativa, ainda que no escuro. E tento sobreviver, mantendo nos chão os pés que podem querer trilha a estrada dos caminhos mais fáceis – na ilusão de que se pode, voando, fugir do tempo.
Peter, arde a dor pequena da sua Sininho. Que, enquanto latejou, foi luz admirável, mas fugaz. Quando se confrontou com a luz tensa de uma vida, a minha vida, transferiu energia; não, luz. Tenho visto e consolidado rastros demais para ter a leveza da sua pretensão da juventude eterna, Pan.
Por isso, na madrugada de mais uma noite, vou colhendo rastros para semear histórias. Quero crer. Porque ser crente é coisa mais de maduro do que de jovem. Jovem tem certeza. Tanta certeza que acredita que não duvida que voa, quando acha que está voando , nem que pode se desvencilhar da sombra, quando acha que sua sombra fugiu...
Velho já o suficiente, nem tive tempo de me responder do que se alimenta Peter Pan. Não será dos meus rastros indigestos. Digo com alguma pouca certeza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário