A barbicha era a de sempre. Maltrapilha, rala, irregular. Não fosse a sobreposição anárquica de pelos brancos, nada lhe denunciaria a passagem do tempo. Apoiado no nariz adunco, um óculos redondo no melhor estilo trotskista. Poucos flagelos dos anos, suficientes, porém, para encorajarem meu teatro dissimulado, que me desobrigou de admitir que o tivesse reconhecido.
A cabeça baixa, olhos fixos em um destes jornais vagabundos usados para lavar dinheiro da politicalha inescrupulosa, e um passeio pela memória. A busca por momentos de convívio com o ex-colega de trabalho que seguia, sem me reconhecer, em minha direção.
Um passado que trazia a lembrança de uma figura reticente. Eu sempre a lhe censurar, no íntimo, o acanhamento de ousadias, a palavra insegura. Se bem me lembrava, eu tinha convicção inabalável de que eram as minhas iniciativas as bafejadas pela sua escolha, as que ele queria barrar, sempre que eu ousava tentar algo. O que fazíamos? Investigávamos crimes contra a administração pública.
Eu queria mudar o mundo. O que significava prender metade de todos os que eu achava que roubavam. E eram muitos. Muitos...
Ele foi sempre a última versão dos relatórios que escrevíamos. E meu sonho de um mundo mais justo sempre era adiado por suposições temerárias e afirmações sem risco, nada categóricas, com as quais ele preenchias as folhas. Assim, eu pelejei dias e dias contra a cruz da inércia do meu parceiro.
Sempre tive a teoria de que crescem na carreira os que vão ficando ano a ano nos mesmos lugares, graças à submissão. Se a coragem lhes falta, sobra nos que não se intimidam diante do desgosto provocado por decisões equivocadas ou escusas. E sempre que eu refletia sobre esse tema, era aquele “Zé” que me vinha à cabeça segurando uma bandeira, com brasão da “Escuderia dos Omissos”.
Para meu espanto, ele ficou conhecido como Zé do Siso, porque era à sua consciência que os chefes acorriam na busca de orientações sobre como atuar de forma prudente em operações policiais. Entrava em sua sala, ouviam suas frases cheias de reticências e saiam arrotando exclamações. E o que era medo virou cautela; quem era covarde virou lenda. De longe, eu acompanhava a mística que se desenvolvia em torno do ex-colega. Que chegou ao status de intocável lenda...ou quase isso, entre colegas e chefes.
O tempo me martelou o juízo de forma eficiente o bastante para entender que covardia anda próxima à precaução, mas nem sempre se dão os braços.
E que somos sensíveis. Todos nós. Desde que nos falem o que nossos ouvidos vaidosos acolham como elogio.
- Cara, você aqui?! Virou plantonista. Dia desses, falei com o um colega que queria saber onde você estava.
- ...
- Mermão, gosto de você. Devia ter feito como você, que ganhou o mundo. Mas fui ficando, ficando. Quero é me aposentar. Bicho, virou uma merda. Ninguém mais trabalha com coragem. Você é um cara honesto. Gosto de você. Bom te ver!
Registrou a admiração. A ocorrência? Nem eu sei. Foi embora: decidido. E eu, bem, sabe como é, ainda não sei ao certo...
Nenhum comentário:
Postar um comentário