
- Sou o pai da moça que morreu.
Ele trazia na frase a certeza que não precisaria, naquele momento, de uma identidade para se fazer entender. Havia apenas uma moça naquela situação. Não na delegacia. Àquela altura, no repouso frio da câmara gelada, o “podrão”, do Instituto Médico Legal.
Nunca houve frase justificável o suficiente para finalizar o silêncio que imperou. E ainda impera a cada segundo que tento fazer as palavras pousarem neste texto para dar vazão à história. Se a tensão freava tudo antes, o pai da vítima desconstruiu o cenário de crise silenciosa com a frase que me atormentaria desde aquela noite até hoje – e eu jurava que ela ficaria dentre a lista de frases que tememos ouvir, mas nunca são pronunciadas.
- Como foi? Você sabe me dizer como foi?
Eu sabia.
Quando o telefone tocou no início da tarde, parecia mais uma ocorrência provocada pelo excesso de uso de drogas. A rotina faz desse tipo de ocorrência um fato frio. Mais uma vez apenas a vida que se encerrava meio aos leitos e à fedentina de mofo de motéis travestidos de hotéis de quinta.
Ao chegar o local, nada da vítima. Havia sido encaminhada ao hospital em uma ambulância. Ao invés de vestígios que dissessem algo além do que esperávamos para mais um caso de overdose, a informação intrigante de que a ambulância tinha sido chamada pelo acompanhante da moça. Não é comum alguém alertar e fugir. Salvo se for uma testemunha, a quem convém o anonimato.
Com o final dos números e as letras da placa de um carro, cheguei ao dono do veículo. À dona. A surpresa é o fator essencial nas diligências policiais. E ela estava lá, dentro das palavras da proprietária do veículo que atendeu minha ligação.
- Deve haver algum engano, meu senhor. Eu estava dormindo. Meu carro está na garagem...estava...Flávio?! Fláviooo???? Só um momento, policial, estou ligando para...para o meu namorado...
(...barulho de discagem de celular)
- Flávio? Flávio, você saiu de casa?! Com meu carro, seu f...??!! Tem um policial aqui no telefone comigo, sabia?
Em meia hora exata, o tal Flávio deu as caras no meu plantão. Devia mais à namorada do que à Justiça. Só deixou a moça no motel depois da ambulância ter chegado. Prestou socorro.
- Ela que foi me buscar. Em Ceilândia. Disse que tava virada há três dias. Disse que ia pegar um carro pra nóis sair. Ela queria cheirar. Tava bêbada. Fomu pro motel, hotel, sei lá. Ela bateu as carreiras. Cheirei. Ela cheirou. Tentou cheirar. Logo de cara, quando meteu o nariz, o sangue pingou. Caiu durinha e se debateu, babou, babou muito. Espuma pra cacete. Chamei o SAMU. Esperei chegar e pinei! Minha mina ia me matá se soubesse. Ainda vou me fudê, ela já sabe.
O cara pegou o carro da namorada, foi cheirar com outra em um motel, a moça morre. Se queria ficar maluco, conseguiu.
- Queria saber como foi, você sabe, agente?
A frase do pai me tirou do insight.
- Sabe, agente, esta aqui é a minha filha.
Finalmente a carteirinha.
- Ela tinha uns problemas com bebida. Disse que ia parar. Fez vestibular. Educação física. Há três dias, fez a carteirinha de estudante. Veio me entregar. Não tive tempo nem de dar os parabéns. Tinha saído para comemorar com as amigas. Disse pra mãe que não esperasse. Ia demorar. Não sabia que horas voltaria...
Eram palavras ditas com rancor. Com o gosto azedo de um passado que talhava na boca e se pretendia cuspir. Enquanto a carteira em punho era um talismã, a sorte de um futuro que lhe adoçava as idéias, interrompidas, sem que pudesse desfrutar dessa sensação vaga que é ser, ou tentar ser, normal.
- Então, cana, como foi?
- Meu turno é o quinto. To chegando agora. Não sei como foi. E se soubesse, também não falaria.
Fiz um favor ao militar. Ele precisava odiar alguém. Por algum momento. Nesta profissão, à vezes é preciso se doar...
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