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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A gentileza é uma sarna

Madrugada lenta, demorada. E a visita de chofre, repentina. Como merece ser toda visita a uma delegacia. Além de repentina, visita inesperada. Tanto quanto podem ser inesperadas as visitas a uma delegacia. Não reluto em qualificá-la assim. Já vi de tudo do alto do meu balcão. Não existem mais visitas surpreendentes. Existem as que agem de forma que não espero. E não esperava ouvir, às quatro da manhã, a frase: “ninguém pode viver sem Paris na memória”.
E eu fui a Paris, às quatro da manhã. A Paris de 1997, quando me hospedei nos arredores da cidade, a periferia, o banlieue, no Parc des Thibaudiéres. Hospedado em casa de uma amiga, acudia-me de um casaco para defender-me do frio. Tinha destino certo, o Museu dos Inválidos. Mas fui bruscamente interrompido na minha missão turística por um gigante de um metro. De mãos segurando a cintura. E o olhar severo de Cérbero, o cão mitológico que vigia a porta do reino dos mortos. “Bonjour, monsieur!” A frase brutal! E lá vai meu conceito de civilização nos olhar ardente de um pequeno francês me exigindo a atenção de um simples bom dia.
Retruquei um bonjour de olhos e estima baixos. Eu não tinha civilização. O pequeno gigante arrancara quinhentos anos de civilização ilusória de brasileiro. Sentia isso no andar saltitante e no sorriso maroto com que me abandonara depois de ter-lhe assegurado seu bonjour.
A caminho dos “Inválidos”, fui acometido de uma coceira. Bicho de alma, cutucando. Arranha de cá, esfrega de lá. Alma contorcida. Já eram visíveis, em mim, as brotoejas. Tinha que reconhecer: a gentileza é uma sarna.
Tanto mais lhe atiçam gritos, gestos, atitudes distorcidos em seus inconvenientes decibéis, mais coçam as feridas, gracejando do inoportuno que torna ridículos nossos gestos, deslocados no tempo, local e duração.
Foi assim que me peguei devassando minha pela com as unhas, ao retornar da Paris de 2007, e me concentrar nos tentáculos da srª. Urticária. Porque a sarna do pequeno gigante não havia sido removida. Nem será. Criei dependência daquele pedido insatisfeito de explicações, a exigência de um bonjour.
A srª Urticária, claro, perdeu seu tempo na delegacia, esbanjando suas exigências. Não era o local onde teria seu pedido satisfeito. Questões de outra seara. Foi-se sem um “boa noite”, “obrigado!”, bonjour”.
Não vivi sem Paris na memória. Mas descobri que poderia viver sem as lembranças das luzes daquela cidade. Nunca, porém, sobreviveria à ausência da luz do glorioso e contagioso gigante.
Breve frase de Nelson Rodrigues: “Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.”

5 comentários:

Carol Nogueira disse...

Você tem toda razão, Alexandre. A gente vicia em gentileza. E passa a sofrer a falta dela. Parabéns pelo blog, está muito legal. Beijão.

Quinto Noturno disse...

Carol, digamos assim...a culpa é sua. Rs

Renata Gonzaga disse...

Sofri de outra sarna, que me derrubou em cama de hospital, desmanchou meu fígado e me faz convalescente com urticárias eventuais. Indiferença. Essa é dolorida e até cheira mal quando surge como pancada na cabeça. Foi o que me conduziu ao quarto que do teto lembro muito bem - todas as suas manchinhas e deformações. Indiferença causa urticária, colecistite alitiásica, hepatite e, de quebra, derrame na pleura. Diagnóstico de quem não suporta indiferentes.

Jacqueline Bogdezevicius disse...

Ótimo texto!! Estou começando a ler o blo do começo e posso dizer que começou muito bem. Parabéns! Bjos! Jac

Jacqueline Bogdezevicius disse...

A propósito... Paris ficou tatuada na minha alma.