Foi náusea. Consegui definir a sensação. Veio de ler no jaleco do verdureiro o mesmo nome que o meu. Desperto, reparei melhor na pessoa que vinha testemunhar seu desalento no balcão do meu trabalho, o balcão solitário na madrugada de uma delegacia.
Careca, no topo da cabeça. De uma calvície suada, oleosa. Ponteada por flocos brancos de caspa.
Pedi-lhe os documentos. Sacou dos bolsos uma carteira tão amarfanhada quanto o jaleco - ambos, é provável, manchados pela mesma miscelânea de graxas manipuladas no dia a dia do meu xará. Era o responsável pelo estoque da quitanda que identificava a roupa usada. Justificou. Deve ter reparado meu jeito de olhá-lo.
A náusea não era a roupa. Era a forma dele sustentar o par de óculos para checar seus documentos, unindo uma das pernas à armação da lente, substituindo a fita adesiva, já sem cola, nem função. A lentes, no entanto, traduziam minha vida para a dele, como um espelho sujo qualquer. Eu mal saíra do meu doping onírico e caíra no desânimo de me ver sendo um sujeito que me alavancava à sua vida por um nome igual ao meu. Bela forma de começar meu turno no plantão...Mas ele se foi. E me veio a elegia da náusea à cabeça.
Depois que ele se foi, meu xará, precisei me convencer de que ele não era eu. Nenhum dos dois era o outro que deu certo. Ou errado. Mas ainda faltava muito para o dia dar as caras. Sempre falta, em gestações noturnas assim. Foi data de o sol atrasar. A visita do homônimo renegado não passou de aviso.
A noite não me falha, quando penso. E pensei no patriarca do três quartos. Não se trata de uma entidade,ou instituição para você. É apenas um monumento para mim.
Ele não figura na lista de brasões seculares, familiares. Não se impôs pelo culto aos que despontaram com suas recentes e significativas fortunas. Não. O patriarca do três quartos era um herói de fama estreita, mas suficiente para que meu homônimo fosse apenas uma náusea e não um destino.
Sou filho de um épico que teve início na decisão de sangrar o interior de um país em construção, e instalar-se numa ilha de esqueletos prediais ascendentes, cercada de barro por todos os lados - Brasília.
O seu maior desafio sempre foi a travessia solitária do apartamento de três quartos que lhe havia sido confiado pela generosidade estatal, um imóvel funcional. Incomparável no tamanho em relação às habitações que ele conhecera e vivera no Rio de Janeiro, meu patriarca encara a vastidão de nossa moradia e singrava o mar revolto de um azulejo frio, tarde da noite, para que, no seu retorno ao qual onde ficávamos, reconhecêssemos na bebida servida quente o sabor de familiar do abrigo. E meu patriarca almejava em seu sacrifício apenas no entregar no porto seguro de todas as educações. Nem que para isso impusesse sua autoridade silenciosa a todos os cômodos da nau imóvel de um apartamento de três quartos, depois de horas revoltosas de motins infantis contra os lastros dos limites que necessitávamos.
Menos marujo, se eu sou hoje, deve-se, a uma pedagogia maior. A de ter aprendido a lustrar o espelho sem ver o que não desejo. Porque o patriarca dos três quartos ensinou a lidar com a derrota de verdade, e manter a cegueira diante das derrotas que poderiam ter sido, e nunca foram. Porque são apenas falta de educação. E a náusea é a tentação de tentar reconhecê-las.
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