Acredite: fui concebido dentro de uma delegacia de polícia. Nada tão nefasto quanto ter nascido na própria delegacia onde fui concebido. Acredite. Minha maior mácula, porém, é ser filho, pelo lado paterno, de um sistema carcerário e trazer no gene materno a chaga de uma escala mal elaborada de trabalho.
Eu me reconheço em toda a falta de desorganização, coerência. Acredite.
Quando dei as caras ao mundo, finalmente, veio a pergunta confusa de sempre: quem sou eu?
Sou o Quinto Noturno. Acredite.
Uma delegacia não pode sofrer de abandono nas madrugadas. Devem tutelar seu fuso horário peculiar aos agentes do Estado. Cujo noticiário é a emergência das ruas; a companhia é o descartável: café ralo, cigarro velho, linhas traçadas em folhas de papel virgem para lembrar a agenda de um distante amanhã – o dia seguinte é uma longa caminhada, que só começa depois de, aproximadamente, uma hora e trinta de turno.
E na fragmentação desse expediente incomum das madrugadas, eu sou o Quinto Noturno. Então, o que sou?
Não. Dizer que não sou apenas um servidor público dentro de uma delegacia balbuciando filosofia de cárcere, soa pretensioso. Querer ser tudo além do que acham que somos, gera expectativa de pretensão em nossos interlocutores. Acredite.
Mas avanço pouco no que sou. O Quinto Noturno é um ponto de vista. Sou a crônica dos meus olhos.
É de um certo olhar que falamos sempre...
Acredite!!!
Um comentário:
Que bom que nasceu, seu moço. Já era tempo.
Que bom que nasceu, porque ninguém nasce para a escuridão, só para a luz.
Que inveja de quem nasce, seja dia ou noite. No meio da rua, na saída de um ônibus numa rua barulhenta no Rio de Janeiro – como a moça que passou ontem no noticiário. A mulher deu à luz ali sem nem mais poder de tanto parir o menino, pouco depois de descidos os degraus do coletivo. Ainda bem que o mirradinho despencou. Foi expulso de uma vez da escuridão e foi jogado na luz.
Ninguém volta ao tremor sistêmico dos batimentos irrefletidos, dos vasos dilatados. Ninguém. Mas, às vezes, seu moço, acho que volto sem nem ter nascido ainda. Porque ainda não vi esse clarão que todo mundo diz que tem quando muda de uma vida pra outra. Porque nem sei o que é o clarão. Se seu moço diz que nasceu é porque sabe que um dia não foi dessa vida e de repente passou a ser. A vida danada de custosa...
Soube de um caso de um meninote que queria voltar pra barriga da mãe. É que nele deu medo de pegar a vida com as mãos e mastigá-la com os dedos. Temia deixá-la cair de uma vez. A mãe explicou que não podia voltar porque não cabia. Ele já era grande demais para deixar a vida. É que quando se vê a luz se cresce tanto que nem se sabe quanto se pode vibrar.
Seu moço já se iluminou e espichou – e por isso não vai voltar a ver o breu. O importante é o rigor da chegada e ter a vista certa e aguçada para ver o que há de enxergar – a água correndo no ribeirão e o ar polvilhando os olhos de cor.
Mas se a luz for muito forte padece-se horrores. São dores profundas que cortam os vasos, porque não se suporta a vidinha rasteira – seu cheiro de dor, sua canção amarga que ninguém mais consegue ouvir. Somente soa a seus ouvidos sôfregos. E não lhe cai bem esse som pungente.
Eu acho, seu moço, que tenho a luz de insistente que sou. Vim, mas no começo não queria e voltei pro breu. Ouvi me chamarem num choro de torneira. Então vim de novo – por isso, meu nome é o que é. Nasci, fui e nasci de novo. Estou nascendo todos os dias. Porque minha vida, minha vida vibra só nos intervalos.
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