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sábado, 19 de fevereiro de 2011

AS CONVENIÊNCIAS DA LÍNGUA



Ainda início de turno. Parte final do diálogo.
- Nem adianta perguntar. Levo isso comigo, até o túmulo. O que vi, vi e não conto. Com todos estes anos de trabalho nas costas, já vi até reunião de chefe com o diabo. Do diabo falo que todo mundo conhece. Bom, meu ex-chefe também, mas não conto nada. Levo comigo. Por isso que as pessoas confiam em mim.
- A senhora tem razão. Segredo de trabalho é sagrado.
Ainda na véspera de assumir meu balcão, cá com meus botões tentei imaginar a razão da madrugada ter arrastado à nossa praia de infortúnios a esfinge da burocracia do cerrado.
- Nada, não. Era testemunha. Entregou tudo. Se fosse sempre assim, essas ocorrenciazinhas de briga de marido em mulher, teríamos menos serviço. A gente acha que não, mas vizinhos ficam de olho todo tempo na vida da gente. Ninguém tem amigo, não!
Queria sentir a felicidade do meu colega. Que carregou um sorriso irônico para o leito, encerrando a última história do seu dia de plantão.
Iniciei meu turno diletante. Fui à aula inaugural do curso de formação de policiais. Professora e delegada à frente da turma. Um belo sorriso à disposição da turma de agentes. Dócil. Até na constatação que nos surpreendeu:
- Não se iludam. Pai, mãe, irmão, mulher. São eles que vão denunciar vocês na corregedoria.
Pulo para a história do turno anterior. E o libelo em favor do silêncio profissional.
Poucas vezes vi o silêncio encobrir coisas certas. Há sempre um malfeito na estrutura de um silêncio, de um segredo. Uma maldade contra os cofres públicos, em regra.
Mas o malfeito da vida alheia é diferente. É, no dito revoltado do poeta, a eterna falta do que falar. E a vida vazia não sossega diante da falta do que falar. Sem demagogia: são sempre seus vizinhos que se sentam aqui para falar da vida de vocês. Na ausência deles, seus pais, mães, filhos, primos e toda a sorte de vínculos parentais. Porcaria...
E se quero esvaziar o balcão, basta proclamar a necessidade de testemunhos de notáveis fatos de bastidores que compõe a crônica da burocracia republicana. Eis o lema de Brasília: ordem, progresso e silêncio!?
Ah longa madrugada...já sei que horas a fio tentarei decifrar a estranha matemática que faz dos leitos privados o tema dos ladinos espectadores da vida alheia. Além de costurar o trapo de silêncios, puído, que vela o sono da impunidade, filha desta nossa mãe hostil, pátria amarga...Brasil.

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