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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A JULIETA ERA DO SANTO

Advertência: o post a seguir finaliza-se com um trocadilho. Desavisados e críticos em geral devem ser retirados destas páginas, antes de se sentirem ofendidos em sua sensibilidade.


Um Romeu extraviado surgiu no meu turno, hoje, às tantas. Caso de identidade perdida. Veio de rosto lívido, corpo trêmulo, feição atordoada. Pareceu-me caso de envenenamento. Não era. Perdera a identidade. Em uma casa de lanches. 


Aos poucos, o tal Romeu ganhou voz. De nada me valeram, porém, as perguntas burocráticas que me garantiriam um número a mais em minhas estatísticas de atendimento. Só prestou atenção em mim quando perguntei o local onde acreditava ter perdido o documento.


“Uma torteria, Amor aos Pedaços”.


Sim, uma rede de docerias que vem crescendo no Distrito Federal. A frase não se bastou. Foi apenas um artifício do seu afeto para tentar juntar cacos de uma história fragmentada e esculpida em seu semblante. Triste história.


“Foi lá...lá que perdi...para sempre”. 


Em uma delegacia, sempre é tempo demais. Assim como um minuto pode ser a soma de algumas eternidades. Mas o Romeu da doceria queria cerca seu sofrimento dentro do seu “para sempre”. Acho que gostamos de pensar que vamos sofrer para sempre, acreditando que isso seja sofrer só uma vez. Ah, Romeu, só mais um ser humano do lado de cá das bandas!


O fato é que a doceria era o palco incerto de um amor furtivo. E furtado, já que, sem violência ou grave ameaça, Romeu retirava de alguém o amor a ele oferecido por sua Julieta. 


Amor sem dádivas e sacrifícios. Só constante na incerteza da amante estar ali ou não, a garantir-lhe a trajetória de um concubino. A Julieta devassa era, também, imaculada às mãos toques e violações pelo corpo do meu “cliente” – o que ele interpretava sempre como uma prova de resistência, a ser paga como um amor sublime.


Até que, em uma das tardes perfeitas – aquelas nas quais ela marcava e comparecia -, veio a proposta: “Tive uma idéia, quero resolver nosso problema”.


Garoto, em brasa diante das próprias fantasias e nas manifestações reais e delirantes que creditava à paixão de Julieta, pouco se conteve em suas calças. Assim me confessou.


“Um pacto, Romeu. E você participa dele”.


Sim, da tarde não passaria a consumação de sua glória, as núpcias renovadas com a devassa Julieta imaculada. Quem sabe, não varariam noite, madrugada, clarear adentro.


Não me contive na curiosidade de imaginar a cara desalentada de Romeu, cujas migalhas de amor tão inconstantes sempre alimentavam uma esperança renovada de amar, ao saber que o pacto fora de Julieta para com um santo.


“Prometi nunca mais nos tocarmos. E a grandeza de seu amor estará em me fazer cumprir a promessa. Sei que não vai me deixar na mão, Romeu”. 


Ela, não, certamente...


Se assim como chegou a Julieta se foi, não sei dizer. Sei que o olhar catatônico de Romeu se sustentava em uma frase pronunciada baixo, quase inaudível. Que não meu furtei a recolher aproximando meu ouvido de seu sussurro.


“Fiador de promessa...fiador de promessa...fiador de promessa. Amar é isso?!”


E o Romeu de uma Julieta de amor fragmentado acabou se recuperando do veneno. O que lhe deu chance de uma última surpresa. Sacou de uma fatia de torta, embrulhada, guardada na mochila onde, inclusive estava sua identidade. Torta das boas, fatia robusta. 


“O senhor aceita?”


Recusei. Agredeci. Nunca me sentira tentado pela gentileza do Amor aos Pedaços.


Assim ficamos da madrugada ao amanhecer. Eu quis ouvi o pio da cotovia que alentaria a decepção do meu amigo (sim, amigo) Romeu. Mas no cerrado a cotovia que pia primeiro é um pardal.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

E O CACHORRO LATIU PARA A SAUDADE

O circo partiu. Foi embora. Chegou antes do Natal. Quando eu fiquei vendo-o com a cara de um dos palhaços de Fellini, poético, nostálgico, saudosista. De imediato, fui atrás, intrépido, da trupe.

Fiz o que todo menino de minha idade, já velho, faria. Fui atrás do meu sonho, do que era o circo em meu sonho. Nem esperei o apresentador. A estrutura estava montada. Eu a preencheria com minhas fantasias, memórias. Meus palhaços invisíveis.

Infeliz constatação de um dia triste: o palhaço não cumpriu seu destino inevitável de fazer rir. Acanhado em vestes, mínimo na graça, insistia, com esforçado talento, na tentativa de encontrar o riso alheio. Falhou. O palhaço virou, ao fim, o estandarte da tristeza circense.

 Mas a beleza miúda do palhaço não podia ser desculpada pelo passado glorioso da estirpe bufa de seus ancestrais. E o grotesco corpo de baile feminino, a entreter durante um número e outro? A quem interessar poderia? Elas compunham um império sem sentido, dançando coreografias de estética irresponsável, com roupas espremendo culotes assoberbados e trajes à beira de um atraso de um século.

Que saudade de leões e tigres, cuja voracidade poderia devorar minhas entranhas decepcionadas com a contrafação de circo. Ou mesmo dos urubus e hienas, que se refestelariam diante da carcaça do mágico Fellini, revirada de vergonha em seu caixão.

Logo Fellini...

E por que Fellini?

Sim, Fellini. Que ensinou a arte de perscrutar a áurea do mítico palhaço, ainda que diante dos gritos finais, de decadência, na arte circense. Foi dele que me lembrei ao comprar o ingresso e tentar esquecer o mundo balbuciante em redor.

Mas o circo foi embora bem antes da chegada daquele espetáculo. E dei razão ao cachorro que encontrei latindo, no local onde a lona e a trupe se uniam dias antes. O animal esquecido não latia para o dono, provável autor daquele abandono. Assim como eu, neste momento no qual escrevo, o cão latia para a saudade.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O PATRIARCA DO TRÊS QUARTOS

Foi náusea. Consegui definir a sensação. Veio de ler no jaleco do verdureiro o mesmo nome que o meu. Desperto, reparei melhor na pessoa que vinha testemunhar seu desalento no balcão do meu trabalho, o balcão solitário na madrugada de uma delegacia.

Careca, no topo da cabeça. De uma calvície suada, oleosa. Ponteada por flocos brancos de caspa.

Pedi-lhe os documentos. Sacou dos bolsos uma carteira tão amarfanhada quanto o jaleco - ambos, é provável, manchados pela mesma miscelânea de graxas manipuladas no dia a dia do meu xará. Era o responsável pelo estoque da quitanda que identificava a roupa usada. Justificou. Deve ter reparado meu jeito de olhá-lo.

A náusea não era a roupa. Era a forma dele sustentar o par de óculos para checar seus documentos, unindo uma das pernas à armação da lente, substituindo a fita adesiva, já sem cola, nem função. A lentes, no entanto, traduziam minha vida para a dele, como um espelho sujo qualquer. Eu mal saíra do meu doping onírico e caíra no desânimo de me ver sendo um sujeito que me alavancava à sua vida por um nome igual ao meu. Bela forma de começar meu turno no plantão...Mas ele se foi. E me veio a elegia da náusea à cabeça.

Depois que ele se foi, meu xará, precisei me convencer de que ele não era eu. Nenhum dos dois era o outro que deu certo. Ou errado. Mas ainda faltava muito para o dia dar as caras. Sempre falta, em gestações noturnas assim. Foi data de o sol atrasar. A visita do homônimo renegado não passou de aviso.

A noite não me falha, quando penso. E pensei no patriarca do três quartos. Não se trata de uma entidade,ou instituição para você. É apenas um monumento para mim.

Ele não figura na lista de brasões seculares, familiares. Não se impôs pelo culto aos que despontaram com suas recentes e significativas fortunas. Não.  O patriarca do três quartos era um herói de fama estreita, mas suficiente para que meu homônimo fosse apenas uma náusea e não um destino.

Sou filho de um épico que teve início na decisão de sangrar o interior de um país em construção, e instalar-se numa ilha de esqueletos prediais ascendentes, cercada de barro por todos os lados - Brasília.

O seu maior desafio sempre foi a travessia solitária do apartamento de três quartos que lhe havia sido confiado pela generosidade estatal, um imóvel funcional. Incomparável no tamanho em relação às habitações que ele conhecera e vivera no Rio de Janeiro, meu patriarca encara a vastidão de nossa moradia e singrava o mar revolto de um azulejo frio, tarde da noite, para que, no seu retorno ao qual onde ficávamos, reconhecêssemos na bebida servida quente o sabor de familiar do abrigo. E meu patriarca almejava em seu sacrifício apenas no entregar no porto seguro de todas as educações. Nem que para isso impusesse sua autoridade silenciosa a todos os cômodos da nau imóvel de um apartamento de três quartos, depois de horas revoltosas de motins infantis contra os lastros dos limites que necessitávamos.

Menos marujo, se eu sou hoje, deve-se, a uma pedagogia maior. A de ter aprendido a lustrar o espelho sem ver o que não desejo. Porque o patriarca dos três quartos ensinou a lidar com a derrota de verdade, e manter a cegueira diante das derrotas que poderiam ter sido, e nunca foram. Porque são apenas falta de educação. E a náusea é a tentação de tentar reconhecê-las.

domingo, 23 de janeiro de 2011

UM ESPÓLIO CATÓLICO

Quando entrego menos que tudo, me sinto furtando alguém. É o espólio da minha herança católica, no fundo do meu baú das contradições.

Não, não é meu pensamento. Minha vigília não se arrisca em melodias tão doces. Foi um sujeito raivoso que lastimou tudo isso. Horácio, o cara. Não o Horácio romano, grande, da retórica. Estou falando de um sujeito raivoso. Na aparência e palavras, incapaz de truculência. Mas, no caso dele, a doação afetiva e material não foi opção, mas destino imposto, marca na alma. Daí, a raiva, confessada, arrependida.

O vazio da entrega, a todo custo, foi entupido de rancor, que, pelo visto, teve campo fértil na vala dessa incessante doação. A alma também grita, rapaz.

Peguei. Sim, peguei o raciocínio, chapinha. Também fui católico. De missa e culpa. Jesus Cristo está no pão e não na hóstia. Acho que isso pode curar você, amigo. Lá vem de novo, aquela intimidade inesperada com estranhos, e seus malquistos acotovelamentos no meu balcão da madrugada. Mas lá vai, amigo.

Lá vou eu nos meus surtos de divã.

O nosso Horácio padece de uma doença démodé: espólio católico. Sente culpa quando não está no exercício dos que acha relevantes préstimos e doações. Uma hora explode. Ainda assim, bastam encontros fortuitos, casuais e lá vai nosso herói em glória ofertando sangue para irrigar artérias que formam um sistema de esgoto entupido, congestionado, cheio de vazamentos.

Explodiu aqui, na minha frente. Queria ser preso, algemado. Por quê? Porque cometeu diversos crimes.na sua fantasia. E a culpa de cometê-los trouxe-o por estas bandas. Horácio, Horácio. A culpa é sua. A raiva também. E tudo o que você doou e doará. Bata no ombro desta sua culpa, tente as pazes. Converse, terão tempo. Ela estará aí, culpa e raiva, pelo resto de sua vida. Mas deixe meu balcão livre para os que vivem a raiva, sem culpa.

E não adianta se jogar em algum abismo repleto de ateísmo, querido. Pelas bandas de cá, você virou culpado antes de nascer.

Fazer o quê?

Console-se, querido orador desta minha cansativa madrugada. O espólio católico não é ensinamento ou criação do Cristo. É mais outra cruz que puseram na conta Dele.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O texto que virou memória

O Quinto Noturno manteve-se calado em meu peito anos, décadas. Emergiu em meio a uma euforia verborrágica. Não foi primeiro o verbo, mas a propalação em cadeia de frases, conceitos e a busca de uma voz. Como recém nascido, berrou em um fôlego bradado de sua estrutura disforme. Inicialmente, achei que seria uma apresentação. Descartei-o, depois. Virou lembrança. Mas memória só é memória se partilhada. Não sendo assim, é silêncio – e silêncio não tem categoria, diversidade. É silêncio, fim. Destino que não teve o texto abaixo, que a complacência paterna entendeu por bem tornar memória. E ponto. Mas não esperem mais disso. Pai de texto tem que ser esperto como Saturno, cujos filhos devorava. E escrita forte é aquela capaz de fugir do infantício e arrostar a paternidade, quiçá suprimi-la. Segue...


"O Quinto Noturno é uma construção do silêncio. Multiplica-se na fumaça que perambula entre tons de cinza e preto. Sou eu no último fragmento dos turnos da noite. Sim, o Quinto Noturno sou eu na escala que divide a vigilância entre os turnos do sono.

O Quinto Noturno é o estado desperto ainda sonho; o sonho impregnando a luta de um desperto em gestação.  Tudo reunido na costura efêmera da escultura fantasma dos olhos embaçados de uma madrugada.

O Quinto Noturno é sempre a constelação de adjetivos criados na última esquina que a alta noite dobra, antes do fio de luz solar abrir a fórceps a intimidade da madrugada. Expeça-se ao fenômeno de angústia, destempo e criação um nome. O Quinto Noturno será o que se revigora.

Não se aflija. As construções do Quinto Noturno são feitas sob o pêndulo dos encontros que surgem nas madrugadas, dias, noites, fragmentos, instantes, abraços, e todos ambientes onde prevalece a certeza da dúvida.

Sente! Aproveite o espaço sempre disponível no turno derradeiro da noite em contrações que cuspirão o arrebol. É sempre hora de esperar. Contemple. O horário do Quinto Noturno tem a companhia letárgica do começo, mas, ao final, a incerteza ambígua da aurora – que é camaleoa, ao que se levanta, ao que se deita, na sua chegada.

Só não traga consigo suas consistências. São o peso mais incômodo, porque não resistem à proximidade. Invadem, crescem, multiplicam-se no ritual cego dos convencimentos. O Quinto Noturno já mastigou excessivas madrugadas para acreditar no caldo ralo das convicções.

O Quinto Noturno divide o café requentado de sua madrugada com a velha bufa das noites adentro, que faz da persuasão grosseira apenas um manto para lhe cobrir o rosto carcomido e o sorriso cínico. E o Quinto Noturno já lhe estendeu a mão, em despedida, vezes de mais para acreditar.

Assim como lhe estende a mão agora. Você acredita?"

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A gentileza é uma sarna

Madrugada lenta, demorada. E a visita de chofre, repentina. Como merece ser toda visita a uma delegacia. Além de repentina, visita inesperada. Tanto quanto podem ser inesperadas as visitas a uma delegacia. Não reluto em qualificá-la assim. Já vi de tudo do alto do meu balcão. Não existem mais visitas surpreendentes. Existem as que agem de forma que não espero. E não esperava ouvir, às quatro da manhã, a frase: “ninguém pode viver sem Paris na memória”.
E eu fui a Paris, às quatro da manhã. A Paris de 1997, quando me hospedei nos arredores da cidade, a periferia, o banlieue, no Parc des Thibaudiéres. Hospedado em casa de uma amiga, acudia-me de um casaco para defender-me do frio. Tinha destino certo, o Museu dos Inválidos. Mas fui bruscamente interrompido na minha missão turística por um gigante de um metro. De mãos segurando a cintura. E o olhar severo de Cérbero, o cão mitológico que vigia a porta do reino dos mortos. “Bonjour, monsieur!” A frase brutal! E lá vai meu conceito de civilização nos olhar ardente de um pequeno francês me exigindo a atenção de um simples bom dia.
Retruquei um bonjour de olhos e estima baixos. Eu não tinha civilização. O pequeno gigante arrancara quinhentos anos de civilização ilusória de brasileiro. Sentia isso no andar saltitante e no sorriso maroto com que me abandonara depois de ter-lhe assegurado seu bonjour.
A caminho dos “Inválidos”, fui acometido de uma coceira. Bicho de alma, cutucando. Arranha de cá, esfrega de lá. Alma contorcida. Já eram visíveis, em mim, as brotoejas. Tinha que reconhecer: a gentileza é uma sarna.
Tanto mais lhe atiçam gritos, gestos, atitudes distorcidos em seus inconvenientes decibéis, mais coçam as feridas, gracejando do inoportuno que torna ridículos nossos gestos, deslocados no tempo, local e duração.
Foi assim que me peguei devassando minha pela com as unhas, ao retornar da Paris de 2007, e me concentrar nos tentáculos da srª. Urticária. Porque a sarna do pequeno gigante não havia sido removida. Nem será. Criei dependência daquele pedido insatisfeito de explicações, a exigência de um bonjour.
A srª Urticária, claro, perdeu seu tempo na delegacia, esbanjando suas exigências. Não era o local onde teria seu pedido satisfeito. Questões de outra seara. Foi-se sem um “boa noite”, “obrigado!”, bonjour”.
Não vivi sem Paris na memória. Mas descobri que poderia viver sem as lembranças das luzes daquela cidade. Nunca, porém, sobreviveria à ausência da luz do glorioso e contagioso gigante.
Breve frase de Nelson Rodrigues: “Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.”

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Entrevista com o Quinto Noturno

O que é ou quem é o Quinto Noturno?

Há duas possibilidades. Ignace Xavier Joseph Leybach, compositor do século XVII, compôs o “Quinto Noturno”. Tratava-se de uma obra de imenso prestígio em sua época, mas ela não sobreviveu ao tempo. É pouquíssimo conhecida. Quase rara. A segunda possibilidade é dar o título a este autor que vos fala. Alguém que acredita ter algo a partilhar, mais do que simplesmente dizer. O Quinto Noturno é a pessoa escalada para assumir seu posto de trabalho dentro de uma delegacia em um horário que vai das 4h30 da madrugada às 7h. É uma escala informal dentro dos plantões em delegacia. Mas quem trabalha neste horário pega a transição entre a noite e o dia. Um espetáculo glorioso que nossa rotina aprende a desconsiderar. Mas, o Quinto Noturno não. Assim, ficam as sugestões de escolha. Se os textos puderem acrescentar algo, excelente. Porém, não seria de todo mal acrescentar à memória de uma pessoa, junto com a expressão Quinto Noturno, a lembrança de uma melodia que fez a trilha sonora em diversos salões e seus balés, flertes, e, o principal, vidas. Ouçam o Quinto Noturno, sua melodia e suas palavras.


O que você acredita que possa escrever a ponto de interessas outras pessoas?

Dar sentido às vidas, às incoerências, é exercício quase necessário quando se acorda de um sono ruim, às quatro da madrugada, para ficar à espera de alguém com problemas. Uma delegacia é um breviário de problemas. E ela também está ali para, de alguma forma, resgatar o significado da vida das pessoas. Entregar seus problemas a uma delegacia é sempre uma tentativa de resgate, de voltar a ter um controle sobre a própria vida. Claro, fantasia que dura só até o momento da burocracia dar seu recado de como é a vida real, ou surreal, no sentido kafkaniano. Delegacias de madrugada são laboratórios sem comparação para vasculhar as razões da vida. Avanço um pouco ao tentar rascunhá-las, sob uma ótica de uma vigília obrigada, profissional. O ponto de vista do Quinto Noturno é o pequeno problema diante de todos os temas. Afinal, toda a vida, em si, é uma luta contra pequenos problemas, com a persistência de nossa ignorância tentando dilatá-los.

Quais os temas que lhe interessam?

Todos os que me façam sentir náuseas. Meu processo criativo é a náusea. A vontade de expelir algo que mexe comigo. E não necessariamente eu saiba. Escrever é curar a náusea. Será que Sartre falou isso alguma vez...rrsss...?


Você se baseia em fatos reais para seus posts?

Sempre. A vida me afeta sempre me afeta. Mas fala sobre as tais afetações. Escrever é a vida de forma indireta.

A finalidade do blog é apenas filosofar? Como surgiu a ideia?

A grande surpresa: o blog surgiu para dar visibilidade a um livro em construção, cujo título provisório é Escalado. Mas a ideia foi tomando vida própria. Então, o livro, que é de um amigo, passou a concorrer com o blog. Gosto desse ambiente competitivo. Aguardem, a primeira parte do livro, ainda em construção, ficará disponível em breve.

Agora que começou, o que pretende para o futuro?

Nada. Além de repetir a entrevista em um ano e desdizer tudo o que disse até o momento. O Quinto Noturno é um estado de vigília, mas também de sonho, letárgico. E nunca sofri de sonhos repetitivos. Aliás, sofro, sim. E sempre é de um avião caindo. Que venham muitas quedas, porque o voo precisa subsistir.

Prazer em nos conhecermos

Sintam-se à vontade. E obrigado por compartilharmos pensamentos, frases. A partir de hoje.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Quinto Noturno

"Quinto Notuno, o último plantão, aquele que se inicia no começo da madrugada e termina ao amanhecer".

O Quinto Noturno. Servidor dos plantões policiais. Quarenta anos com cabelos grisalhos. De chapéu, me dão muito menos. Sem cobertura, grisalho, dão muito mais. Óculos escuros durante o dia. Olhos vermelhos, sempre. Ou porque durmo até tarde, ou porque não durmo. Tenho o estranho hábito de filosofar sobre o cotidiano desgastado de uma Capital nova e já decadente. Assim como me sinto íntimo dos assuntos do mundo inteiro. Jazz, romances policiais angustiados, inteligência, delicadeza e becos sem saída existenciais são alguns hobbies. Às vezes faço de roupas elegantes uma fantasia. Às vezes, faço da fantasia um texto. Enfim, escrevo para viver sobre a vida, acima do purgatório de concreto. O Céu é o andar de cima. O inferno são os pés no chão.