Um Romeu extraviado surgiu no meu turno, hoje, às tantas. Caso de identidade perdida. Veio de rosto lívido, corpo trêmulo, feição atordoada. Pareceu-me caso de envenenamento. Não era. Perdera a identidade. Em uma casa de lanches.
Aos poucos, o tal Romeu ganhou voz. De nada me valeram, porém, as perguntas burocráticas que me garantiriam um número a mais em minhas estatísticas de atendimento. Só prestou atenção em mim quando perguntei o local onde acreditava ter perdido o documento.
“Uma torteria, Amor aos Pedaços”.
Sim, uma rede de docerias que vem crescendo no Distrito Federal. A frase não se bastou. Foi apenas um artifício do seu afeto para tentar juntar cacos de uma história fragmentada e esculpida em seu semblante. Triste história.
“Foi lá...lá que perdi...para sempre”.
Em uma delegacia, sempre é tempo demais. Assim como um minuto pode ser a soma de algumas eternidades. Mas o Romeu da doceria queria cerca seu sofrimento dentro do seu “para sempre”. Acho que gostamos de pensar que vamos sofrer para sempre, acreditando que isso seja sofrer só uma vez. Ah, Romeu, só mais um ser humano do lado de cá das bandas!
O fato é que a doceria era o palco incerto de um amor furtivo. E furtado, já que, sem violência ou grave ameaça, Romeu retirava de alguém o amor a ele oferecido por sua Julieta.
Amor sem dádivas e sacrifícios. Só constante na incerteza da amante estar ali ou não, a garantir-lhe a trajetória de um concubino. A Julieta devassa era, também, imaculada às mãos toques e violações pelo corpo do meu “cliente” – o que ele interpretava sempre como uma prova de resistência, a ser paga como um amor sublime.
Até que, em uma das tardes perfeitas – aquelas nas quais ela marcava e comparecia -, veio a proposta: “Tive uma idéia, quero resolver nosso problema”.
Garoto, em brasa diante das próprias fantasias e nas manifestações reais e delirantes que creditava à paixão de Julieta, pouco se conteve em suas calças. Assim me confessou.
“Um pacto, Romeu. E você participa dele”.
Sim, da tarde não passaria a consumação de sua glória, as núpcias renovadas com a devassa Julieta imaculada. Quem sabe, não varariam noite, madrugada, clarear adentro.
Não me contive na curiosidade de imaginar a cara desalentada de Romeu, cujas migalhas de amor tão inconstantes sempre alimentavam uma esperança renovada de amar, ao saber que o pacto fora de Julieta para com um santo.
“Prometi nunca mais nos tocarmos. E a grandeza de seu amor estará em me fazer cumprir a promessa. Sei que não vai me deixar na mão, Romeu”.
Ela, não, certamente...
Se assim como chegou a Julieta se foi, não sei dizer. Sei que o olhar catatônico de Romeu se sustentava em uma frase pronunciada baixo, quase inaudível. Que não meu furtei a recolher aproximando meu ouvido de seu sussurro.
“Fiador de promessa...fiador de promessa...fiador de promessa. Amar é isso?!”
E o Romeu de uma Julieta de amor fragmentado acabou se recuperando do veneno. O que lhe deu chance de uma última surpresa. Sacou de uma fatia de torta, embrulhada, guardada na mochila onde, inclusive estava sua identidade. Torta das boas, fatia robusta.
“O senhor aceita?”
Recusei. Agredeci. Nunca me sentira tentado pela gentileza do Amor aos Pedaços.
Assim ficamos da madrugada ao amanhecer. Eu quis ouvi o pio da cotovia que alentaria a decepção do meu amigo (sim, amigo) Romeu. Mas no cerrado a cotovia que pia primeiro é um pardal.