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terça-feira, 29 de março de 2011

A LÍNGUA DA SANTA


Acabou em guerra. Santa! Gente presa. Gente rezando. Peregrinação à cela. Faltou algema para quem queria.  A razão do estardalhaço é tão antiga quanto as letras do alfabeto que compuseram os Dez Mandamentos – religião.
Minervina, uma já senhora que se propaga ainda virgem, é do ramo das igrejas carismáticas. Ou igreja carismática. Em nada, tal fato deve interessar ao leitor, ou mesmo ao autor. Não fora o fato de a conduta a que nossa beata se impunha ter reflexo imediato nas relações de trabalho de nossa, digamos, personagem. Ela não mentia!!! E acreditava, fielmente, que nunca fazia isso. A informação não nos cabe vasculhar, assim como a crença religiosa de nossa santa, reitero. Todavia, o detalhe desta passagem está exato na situação dela ser secretária, e ter como atribuição atender o telefone da chefe.
Pobre chefe, a de Minervina. Que atendia demanda sobre demanda, já que a secretaria recusava-se a inventar uma ausência ou uma desculpa, a fim de que sua superior conseguisse se desonerar da farta lista de compromissos profissionais – boa parte dele decorrentes dos telefonemas que a secretaria lhe encaminhava sem piedade.
Outra peculiaridade da fé professada por Minervina estava no alto grau de solidariedade. Se mentir fosse necessário, ela delegava tarefa de tamanha envergadura a Amanda, colega de expediente a quem cabia o sacrifício d´alma. Assim, garantia seu quinhão no Céu – e, por que não, o salário – à custa do “martírio” alheio.
Já com um pé na casa do “dito cujo” de tantas mentiras inventadas, Amanda decidiu pagar por um espacinho a mais no porão do “coisa ruim”. Vendeu sua alma para um pecado de ébano chamado Miltinho, cujo diminutivo se encontrava apenas no nome. Ah, em tempo: o pecado estava na mão de Amanda – em específico, no dedo anular esquerdo. Mas o negão, dizia, valia a reza redentora (curioso, em se tratando de uma agnóstica).
Resumo da ópera. Cansada da sinceridade da secretária e beata, sua chefe lhe incumbiu de represar todos os telefonemas, para que pudesse trabalhar em paz. Com ou sem mentiras. Ausente, Amanda não poderia salvá-la – àquela altura, encontrava-se com Miltinho em um canto qualquer da repartição, ou sabe Deus onde. Entre ser despedida e se queimar no inferno, Minervina optou pelo mais imediato: queimar, depois, no inferno, a queimar-se, de imediato, no braseiro profissional. E tantos foram os pecados que lhe corroíam a alma que não pensou duas vezes ao ouvir do lado de lá do telefone a pergunta do marido da colega de serviço:
- Amanda está?
- Agora, ela está no inferno, com o Miltinho, e quer me levar junto. Minha chefe também. Minha chefe também!!!!
Quando coube ao meu turno a apuração do quiprocó que se estendeu da repartição até a delegacia, por obra e graça do absurdo da história, nem o marido de Amanda entendeu nada (ele fora à delegacia achando que a mulher tinha sido vítima de sequestro relâmpago), nem Amanda entendeu nada do telefonema apavorado que recebera do marido (e a obrigara a se dirigir, ainda de cabelos molhados, à delegacia), nem Miltinho, a serpente da história, sabia como Amanda o havia convencido a levá-la ao meu balcão para explicar um suposto mal entendido provocado por Minervina.
Como cada qual sabia, ou fingia saber, apenas de parte da história, coube a este que vos escreve juntar os elementos e...mentir. A fim de evitar que pecados mais radicais não constassem da lista maculada de Amanda (homicídio de Minervina), de seu marido (homicídio de Amanda e Miltinho) e de Miltinho (cobiçar a mulher do próximo – se bem que, como me confessou, seu pecado estava mais para a gula do que para a luxúria).
Só não houve jeito para se dar à alma de Minervina. Nem a minha. O pecado dela era o de achar que não mentia nunca. E o meu de achar, a esta altura de minha vida, que minto sempre.

sábado, 19 de março de 2011

O EMBUSTE DAS GRANDES TRAGÉDIAS

Eu vi a onda do desespero. Já a tinha visto antes. Em imaginação. Mas a grande onda tinha a velocidade das criações de minha era, tudo rápido e superlativo. Arrebatamento e barulho. O tom caudaloso das impressões da sociedade espetacular, espetaculosa.

E era que eu esperava do desastre que me anunciaram na chamada da TV. Mas a frustração iminente se anunciou nas palavras demais do repórter e nas imagens de menos. A dolorosa tonelada de água era lenta e portentosa. Lenta demais para nossa era do instante envelhecido. A tragédia é uma lenta melodia, irreversível.

Assim, fiquei me consumindo em ilações sobre o segundo da tragédia. Que é muito, muito elástico. Nossas tragédias pessoais têm medidas cronológicas tais e quais o tsunami que tem desaguado nos nossos noticiários e invadiu a terra do sol nascente.

Nada de alertas e desmontes escandalosos. Não. É uma tromba d´água caudalosa que se projeta lentamente, em um ritmo constante e envolvente. Mas cujo recuo é impossível. Assim, sem percebemos, o leito de nossas vidas é alargado por uma correnteza sem torpeza, mas com determinação certa, reta, irrevogável.

E o instinto de sobrevivência nos vulnera. Porque todos damos aquela esticada no pescoço, já dentro da tromba de água, na busca do precioso oxigênio. Qual nada...é o embuste da tragédia: sorvemos o que nos padece para dentro dos pulmões, vivendo o drama do peso de um tronco abarrotado da trágica água que nos devasta.

Ah como são lentas as nossas tragédias. Corre vida!

domingo, 13 de março de 2011

A HORA E A VEZ DO HERÓI



Ver Josias sempre foi como sintetizar todos os laços fraternos que a batalha diária de um policial é capaz de forjar. Amigo, camarada, irmão, “canaprácaralho!!” E daí? A expressão amuada de um policial do outro lado do balcão é a mesma de todos os peregrinos cuja jornada deságua no mar revolto do meu atendimento.

Portanto, uma cara amuada denunciava desta vez, o lado incomum do balcão que Josias freqüentava naquele instante. Não era meu cliente.  Eu era parte do bando de colegas constrangidos no atendimento que um de nós fazia a um colega de batalhas. E que reações estranhas eu presenciei.

- É cana véi, sentar aqui, deste lado do balcão, é chaga. Que passa de pai para filho, irmão prá irmão.

A sentença fora proferida por um juiz singular na sua credibilidade, forjada em campanas, tiroteios, plantões, e toda a atividade insalubre que cria o sentimento ímpar – para o bem e o mal – de fazer parte da polícia. Josias era seu autor.

- A gente vira referência deste lado do balcão. Se o filho da gente entrar na polícia, vão dizer que era filho do cana problemática que passou por este lado da bancada; se for irmão, a mesma coisa.

A afirmativa dirigia-se a mim, que chegava, sem saber do ocorrido, e a todos os outros, colegas de expedientes e plantões que haviam maculado a imagem Josias pelo fato dele de estar sentado no local, como ele, maculado. Dei-me conta de como tantos que haviam feito de Josias confidente e, sem exagero, quase um deus, negavam-lhe a cumplicidade de um olhar. Pior: o colega afirmava taxativamente ser ele a vítima no balcão e não o autor de um fato que ele próprio fora comunicar. Por alguma razão, o herói tombou em sua versão. Virou o autor e por isso passaria a responder. O máximo que estava conseguindo era a mão estendida da autoridade policial a lhe dizer: “Vem, Josias, vocês são todos culpados. Eu lhe recebo assim mesmo. Não precisa insistir na sua inocência. Não desconfio de você, mas sabemos como as coisas funcionam”.

Inocente? Aprendi já há tempos que inocência depende da velocidade com que a alegamos nossos fatos. Quase nunca se é inocente se a sua versão vier contrapor uma primeira história. Mas, no caso de Josias, era já era maculado. A desavença matrimonial quase sempre faz do policial o autor. E Josias estava ali em razão de uma briga de casal.

E a indignação de Josias vinha da postura dos demais policiais. Ele não queria ser “aliviado” pelos colegas. Queria Justiça. Mas a Justiça, cana véi, se senta bem longe daí. Do lado de cá do balcão, senta o fardo de se escrever a verdade. Do seu lado, senta sempre um culpado. Deus nunca senta do outro lado do balcão, lembre-se, cana véi. Volte outra hora, amigo, porque o herói só é herói porque volta outra hora: na hora certa.

quinta-feira, 3 de março de 2011

PERDIDO...





De outro dia, foi uma carteira. Inúmeras vezes, celular. Há algum tempo, porém, vinha sentindo uma ausência estranha. Procurar o que se esquece é périplo espinhoso. E como explicar algo que se busca sem ao menos ter noção do que seja – apenas, sabe-se, sente-se a falta.


Extraviado, tentei registrar em ocorrência policial a notícia de minha perda. Em qual esquina havia perdido meu sentido, minha orientação, minha lógica. Mas fiquei impedido de registrar meu descaminho já no preenchimento de dados básicos.


Se havia um endereço, eu não tinha um lar. Se tinha um emprego, não me sentia servidor em nenhuma profissão. O que dizer de pai e mãe. Não os reconhecia no emaranhado de letras que, ao final, compunham seus nomes.


Fiquei apático, passivo, diante do choque ao constatar que não tinha mais liames , ligações, que são, ao cabo de tudo, a matéria responsável pelo ser humano. Somos isso: moléculas de carbono e relacionamentos. E os meus haviam se desintegrado diante das contradições que se me impunham e eu não podia sorver. Rachei diante da multiplicidade de sentidos que afrontavam minha interpretação coerente dos fatos.


E agora?


Já não sei.


Só há sentido na vida se tivermos condições de preencher de forma coerente um formulário. Minha mão anda trêmula demais para tal exercício. Não sou nada. Já que sou apenas um rabisco.