Acabou em guerra. Santa! Gente presa. Gente rezando. Peregrinação à cela. Faltou algema para quem queria. A razão do estardalhaço é tão antiga quanto as letras do alfabeto que compuseram os Dez Mandamentos – religião.
Minervina, uma já senhora que se propaga ainda virgem, é do ramo das igrejas carismáticas. Ou igreja carismática. Em nada, tal fato deve interessar ao leitor, ou mesmo ao autor. Não fora o fato de a conduta a que nossa beata se impunha ter reflexo imediato nas relações de trabalho de nossa, digamos, personagem. Ela não mentia!!! E acreditava, fielmente, que nunca fazia isso. A informação não nos cabe vasculhar, assim como a crença religiosa de nossa santa, reitero. Todavia, o detalhe desta passagem está exato na situação dela ser secretária, e ter como atribuição atender o telefone da chefe.
Pobre chefe, a de Minervina. Que atendia demanda sobre demanda, já que a secretaria recusava-se a inventar uma ausência ou uma desculpa, a fim de que sua superior conseguisse se desonerar da farta lista de compromissos profissionais – boa parte dele decorrentes dos telefonemas que a secretaria lhe encaminhava sem piedade.
Outra peculiaridade da fé professada por Minervina estava no alto grau de solidariedade. Se mentir fosse necessário, ela delegava tarefa de tamanha envergadura a Amanda, colega de expediente a quem cabia o sacrifício d´alma. Assim, garantia seu quinhão no Céu – e, por que não, o salário – à custa do “martírio” alheio.
Já com um pé na casa do “dito cujo” de tantas mentiras inventadas, Amanda decidiu pagar por um espacinho a mais no porão do “coisa ruim”. Vendeu sua alma para um pecado de ébano chamado Miltinho, cujo diminutivo se encontrava apenas no nome. Ah, em tempo: o pecado estava na mão de Amanda – em específico, no dedo anular esquerdo. Mas o negão, dizia, valia a reza redentora (curioso, em se tratando de uma agnóstica).
Resumo da ópera. Cansada da sinceridade da secretária e beata, sua chefe lhe incumbiu de represar todos os telefonemas, para que pudesse trabalhar em paz. Com ou sem mentiras. Ausente, Amanda não poderia salvá-la – àquela altura, encontrava-se com Miltinho em um canto qualquer da repartição, ou sabe Deus onde. Entre ser despedida e se queimar no inferno, Minervina optou pelo mais imediato: queimar, depois, no inferno, a queimar-se, de imediato, no braseiro profissional. E tantos foram os pecados que lhe corroíam a alma que não pensou duas vezes ao ouvir do lado de lá do telefone a pergunta do marido da colega de serviço:
- Amanda está?
- Agora, ela está no inferno, com o Miltinho, e quer me levar junto. Minha chefe também. Minha chefe também!!!!
Quando coube ao meu turno a apuração do quiprocó que se estendeu da repartição até a delegacia, por obra e graça do absurdo da história, nem o marido de Amanda entendeu nada (ele fora à delegacia achando que a mulher tinha sido vítima de sequestro relâmpago), nem Amanda entendeu nada do telefonema apavorado que recebera do marido (e a obrigara a se dirigir, ainda de cabelos molhados, à delegacia), nem Miltinho, a serpente da história, sabia como Amanda o havia convencido a levá-la ao meu balcão para explicar um suposto mal entendido provocado por Minervina.
Como cada qual sabia, ou fingia saber, apenas de parte da história, coube a este que vos escreve juntar os elementos e...mentir. A fim de evitar que pecados mais radicais não constassem da lista maculada de Amanda (homicídio de Minervina), de seu marido (homicídio de Amanda e Miltinho) e de Miltinho (cobiçar a mulher do próximo – se bem que, como me confessou, seu pecado estava mais para a gula do que para a luxúria).
Só não houve jeito para se dar à alma de Minervina. Nem a minha. O pecado dela era o de achar que não mentia nunca. E o meu de achar, a esta altura de minha vida, que minto sempre.