Estranha a vida que faz da madrugada, em um plantão de delegacia, o palco de seus desfiles. Faunos, unicórnios, sacis, iaras. Antes a alma mítica do ser humano sangrasse a seiva valiosa, nesta minha seara, trazendo ao tablado sua diversidade de fábulas e criações. A seiva que mancha o palco noturno onde piso a madrugada é em geral o choro desconsolado, aquele do drama humano que desnuda o homem de fantasias, rebatendo-lhe os argumentos, um a um, até deixá-lo diante de nenhuma escolha a não ser conviver com o erro. Para os policiais é só o batido teatro diário, de roteiros e conclusões já antecipadas, onde a fantasia não existe porque é feita das mesmas histórias descoloridas.
Aqui, fareja-se a mentira. Já que o cheiro da verdade é pouco conhecido. Um odor de desfrute raro.
Somos treinados a reconhecer a mentira. E a torcer pela verdade.
Mas de que é cerzido o tecido do sonho, mentira ou verdade?
Pois a matéria-prima do que agora escrevo é sonho. Julgue-a verdade. Decida-a mentira. É uma carta que apareceu no meu balcão. Encontrei-a depois de um sonho, no qual uma senhorinha me contava da vida que deixou. Vida de esperança de concluir ainda nos dias de vida a fantasia primordial do “feliz para sempre”. Porque assim decidiu.
O “feliz para sempre” lhe cobrava um preço. Ainda nova, deixara de conjugar a felicidade na primeira pessoa do plural. Decidira pela irrevogável liberdade. Sozinha. Afastando a sentença paterna de que “importante é ser feliz para sempre; ser livre não importa”.
A senhorinha do meu sonho foi livre, sempre. Não me recordo de um semblante feliz, porém.
Se é verdade, não sei. Mas foi ela – e só pode ter sido ela que me deixou a carta – a redatora do texto, com certeza. A Cinderela incompleta, mas livre, que veio me assombrar no meu descuidado cochilo. Sem mais, transcrevo as “mal traçadas linhas” para que o julgamento possa começar:
“A vida anda muito pesada por isso vim me debruçar um pouco aqui. A vida está cansada, seu moço, porque ninguém lhe dá sossego. É só a pestana se erguer logo cedo que a atrapalhação começa. Todo mundo afobado, correndo e cuspindo, que o tempo acaba não dando pra vida. E é um tal da vida atrás do tempo, tropeçando, porque as pernas vão pesando, e tateando, porque os braços já são poucos...Por isso o tempo está sempre correndo da vida. O senhor já reparou nisso ?!...
E quando ele chega lá na frente, dá uma espiadinha por cima dos ombros e só vê cabelos branqueados, coluna entortada e pele encarquilhada ... ele dobra os joelhos, arria o dorso bufando e ri de tanto que a vida se perdeu sem ter tido tempo pra ser o que deveria.
Ela tinha que ser branquinha de quiboa, toda aprumada de renda e laço grená, com chapéu de palha bem trançada – que é para cuidar da carreirinha de palavras que corre na caixola de lá pra cá, de cá pra lá. A gente não sabe, mas precisa mesmo de muita proteção pros pensamentos. Eles costumam não ter juízo nenhum, fogem e vão embaralhando com outros, numa promiscuidade tremenda. E pra onde todos eles vão...? Aí é que está , não vão. Ficam pervagando entre uma cabeça e outra. Atordoando quem não fica de olho e ouvido bem abertos. Por isso tem tanta gente no mundo que não sabe o que faz da vida... pudera, pensamento fugiu!!
E sabe o que eu ouvi outro dia, uma moça mais ou menos assim da sua idade veio se queixando que não queria mais saber de pensar e que sabia um jeito de não pensar em nada. Negligente, ela deixou a porteira aberta, decerto. E eu fui tentar, de boba que sou. O meu pensamento começou a escarafunchar pra achar uma saída. E fui ficando desalinhada porque não sabia nem mais o que fazer com ele. Amarrei no pé da orelha pra ver se não fugia. Mas ele quis ir lá longe onde eu não enxergo o fim e não alcanço com as mãos. E eu, pensei, não sou mulher de deixar pensamento ir longe porque, seu moço, sabe como é, quando a gente deixa ir , xiiii, aí a vida se dana todinha. Acaba se atrasando e se perde do tempo.
Fui num medico que disse pra eu não parar de pensar que pensar faz bem. Mandou eu deitar num sofá comprido, coberto com uma colcha alaranjada e olhar pra uma parede onde um quadro triste não coloria nada. Depois ele pediu pra eu dizer o que eu estava pensando. Mas seu doutor!, como é que eu vou fazer isso se eu to na peleja pro pensamento não fugir?! Sabe o que ele me perguntou, seu moço, e por que é que a senhora tem medo de deixar o pensamento ir embora? Foi um deus nos acuda! Porque meu pensamento tá pesado, tão pesado que pode abrir um buraco neste chão e descer tanto que vai engolir o centro da Terra. Porque meu pensamento, seu doutor, é que nem a pedra que rola montanha, vai descendo, descendo com tudo e arrasa até ninguém mais sobrar. E vai ficar uma choradeira desgraçada, porque meu pensamento, seu doutor, já não é mais meu e por isso já não me explica mais. Eu fiquei caladinha, bem quietinha, ali deitada de barriga pra cima segurando o peito e apertando os dedos de ficar vermelho. E aquela pergunta bem feia caiu na minha cabeça. E de quem é o seu pensamento, minha senhora. Ah... eu não sabia o que dizer porque o pensamento já estava ali na bochecha inflando pra sair. Olhei pra cima e vi o teto branquinho. Lembrei do vestidinho de renda branca e do chapéu de palha bem trançada e do laço grená amarrado bem acima da barriga – o laço era apertado e eu apertava meu peito mais do que o laço.
Debaixo do chapéu da minha vida branquinha, eu lembrava, o cabelo grudava na testa feito pasta. Fui ficando enfraquecida, foi me dando um calorão pela garganta e eu gritei o mais que pude. Tira esse aperto de mim, seu doutor!!! Ele se levantou de pronto da poltrona. Eu suando, tremendo, levantei do sofá comprido alaranjado e olhei pro chão. E não havia rombo nem nada. Virei pra ele e disse, seu doutor, cadê aquele pensamento pesado que saiu daqui e quebrou o chão. Não tem nada, ele disse, não tem nada mais.
Agora, seu moço, eu ando por aí, nem me importando com os trapinhos pelo corpo e me debruço aqui mesmo no seu balcão pra lhe dizer que depois que meu pensamento fugiu, minha vida não quer mais saber do tempo porque só deita pra um pernoite, de tão levinha. A minha vida, vai indo, vai indo. Bem atrás do tempo. Mas esse tempo é generoso e espera que ela chegue pra lhe dar o braço. Seu moço, como é bom o tempo esperar nossa vida chegar, não é..?”
Nem verdade, nem mentira. Sonho mesmo! Só pode ser. Interessante a Cinderela que inventei em sonho criar uma realidade, para qual estou me desdobrando para criar uma história. História sem pé nem cabeça. Pelo menos não é verdade ou mentira. E tem mais, Cinderela. Se um dia voltarmos a nos encontrar, tenho a infeliz notícia: sua vida cresceu. Já não cabe na sua alma, como um dia coube seu sapatinho.
Juntem tudo. Se der uma história, agradeço a boa vontade. Se não, basta ser sonho, fragmentos de emoção. Assim tem sido, afinal de contas, desde que o homem é...sonho.