Dois predadores corroem-me o ventre que gesta meus esforços literários e o berço das almas de minhas criações. Debatem-se, maduros, contra a censura que os encerra dentro das minhas vontades de redifir, escrever, até que, enfim, sou forçado a libertá-los, contando a história deles. Vencido, não me resta outro que não o caminho da prosa rendida. Pois conto, a partir do texto de hoje, a história de Lobo e Coiote.
Mas não sem antes um alerta. Isento-me de assegurar ao meu leitor um fim. As duas feras que se precipitaram na investida contra minha censura, a elas e apenas a elas cabe cuidar da história cujo início me arrisco a contar. Mas, quanto ao final, quem os pariu que devidamente os embale.
Assim sendo, passemos ao texto. O Lobo e o Chacal são neste momento de minha memória dois meninos. Isso, no trânsito da infância para a puberdade. Inseparáveis. Complementares. Se o Lobo afiava suas garras nas aulas de karatê, era no treino de judô que o Coiote desenvolvia seu senso bélico.
Todavia, jamais chegaram a acordo em um tema: qual o pai com maior bravura.
Filhos, respectivamente, de um Delegado de Polícia e de militar da Marinha, ambos aposentados, só na imaginação e exagero de cada um deles cabiam as façanhas descritas.
- Meu pai enfrenta os comunistas. E na mão. Se precisar, esbravejava o Lobo.
- Isso não é nada, meu pai dava porrada nos comunistas e nos alemães. Você não sabe, mas tem um monte de alemão escondido no Brasil. Meu pai sabe onde eles estão. Quando quer, vai lá e bate só para treinar luta, retrucava o Coiote.
Apenas em acalorados debates sobre as graças paternas se punham um contra o outro. Só. Nas demais situações, dava gosto ver a união dos dois socando os “inimigos” das quadras próximas (a infância transcorreu em Brasília, onde quadras podem, por analogia, ser comparadas às ruas de outros estados).
É assim que apresento a promissora amizade de Lobo e Coiote, amigos cuja amizade parecia não se bastar no espaço de 24 horas. Escola, turma, quadra. Tudo era compartilhado nessa preciosa amizade.
Ou quase tudo. Um único segredo foi preservado para manter íntegra a união entre eles.
Depois de voltar de seu dentista, o Lobo ia chamar seu inseparável amigo. Ao aproximar da entrada onde morava o Coiote, deparou-se com uma cena que lhe impediu a progressão: era o pai de seu estimado amigo, segurando pelo pulso uma criança e dela arrancando trocados de sua mesada. Sob que pretexto, a nossa assustada testemunha jamais se propôs a descobrir. Os anos, porém, dariam respostas bem mais preciosas a cada vez que a memória lhe trazia o episódio à cabeça (continua...)