Semírames chegou com sangues nas mãos e algemas no punho. Assim fui apresentado àquela senhora, de pouco mais do que vinte anos, apesar de aparentar qualquer coisa além dos 50. A saliva densa, branca, cobria os lábios. O choro à exaustão deixou-a a beira de desidratar.
Além das mãos, a canela estava envolta em uma camada de sangue e barro. O barro vermelho do cerrado. Levou, de repente, as mãos ao rosto. Não como os infindáveis maltrapilhos que eu me acostumara a ver. Ela escondia o rosto da vida. Pela primeira vez, achei que a cela tinha chance de dar alento a alguém mais dos que àquelas pessoas que vêem no confinamento de presos alívio à sensação fugaz de segurança. Semírames encolheu-se no choro irrefreável no fundo do corró, apelido que as celas têm nas delegacias.
Não cheguei a conhecer a voz de Semírames. Nada além de um gemido gutural saiu da garganta, urros colossais que despertaram a revolta em outras presas. Sim, havia mais duas carroceiras presas por não terem pagado pensão alimentícia. Justiça consumada.
Bem e mal precisam de dignidade para coexistir. Samírames era apenas dor. Sua dignidade era o um rio perto da estiagem. Duas agentes levaram a presa ao banheiro. Deviam revistá-la. Era Semírames recebendo a atenção do Estado. Que veio na forma de dois dedos descuidados lhe vasculhando as intimidades. O que fez o urro incessante afinar-se, assumindo ares de gemidos, estertores de uma fera alvejada de morte.
E Semírames morreu.
Nem de morte matada, nem de morte morrida. Apenas virou as costas à vida. Deixou que o corpo vagasse quando e onde quisesse. Se a vida lhe tirava de vez tudo, ela queria ser parede, virou-se em definitivo para dentro da cela, querendo mimetizar-se ao concreto.
Se Semírames nunca mais saiu da cela.
Virou reboco, concreto, que eu via em cada liberdade rompida que eu consumi, ao fazer justiça encarcerando; carcereiro de decisões que tinham o peso insuportável de minha consciência. A cela ficou com uma cor qualquer cujo tom é Semírames.