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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

UMA VISITA DE BORGES

By Chema Madoz

By Chema Madoz


Fechei o capítulo das obras completas de Jorge Luís Borges. Não queria fazê-lo. Estava no ápice do conto “O Outro”, do mestre argentino. Fechei, ainda assim, o tomo depois de ser interrompido, segundos antes, pela frase:

- Ainda demora...



A insolência que minh´alma barnabé havia percebido dissolveu-se na expressão familiar de quem sentava ao outro lado do balcão.

- Não, não se incomode. Não era uma pergunta. Era uma afirmação. Ainda demora. Você está ainda do lado que faz as perguntas. Eu estou do lado que tem medo das respostas. E, por isso mesmo, foge das perguntas.

Houve dupla perplexidade em mim: ao não me questionar sobre a situação e sobre a familiaridade com meu interlocutor. Mas uma familiaridade nada cúmplice, incômoda. Algo como se minha alma já não fosse apenas minha.

- O senhor está cansado?
- Você correu demais. Aí, cheguei aqui cansado.
- ...
- O que quer então?
- As mesmas perguntas de sempre. Certo, de qualquer forma, só não serão as mesmas deste lado do balcão.
- Posso lhe servir algo?
- Tudo já me foi servido. Meu tempo é o da digestão. Você correu demais e sorveu demais.

Acarinhei o livro de Borges...folheei as páginas de “O Outro”.

- O espelho...o espelho...
- O lado quebrado do espelho. Não há vaidade que resista a ele, nem pó que não se abrigue em suas fissuras. Só um espelho quebrado pode ser fiel.

Não resisti. O meu outro, diante de mim. Eu, adiante!
Com um gesto nem majestoso, nem reverente, apenas simples, levantou-se “o outro”. Não me coube assentir, proclamar ou dissentir. Levantei-me. Deveria ceder meu lugar. Mas acudi-me do relógio. Era cedo. Argumentei...

- É cedo ainda.
- Eu avisei, ainda demora, mas sempre chega.
- Estamos ainda na metade do meu turno, de hoje.
- Não vi aqui para que você passasse o turno. Por ora, já tenho do que me alimentar.

Meu “outro” foi embora, justo quando estava convencido de que este enredo proclamaria a era de sua ascensão ao final. Foi-se, sem uma resposta. Sem uma pergunta. E sem o erro de inspirar uma filosofia qualquer. Só um gosto amargo de incerteza arrastou-se no céu da minha boca. E uma frase, rascunhada, com a minha caligrafia... “ainda há tempo”. Bem no meio do balcão. Do nosso balcão.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

VOO EM SOLO



“O que alimenta Peter Pan?”

A pergunta me veio à cabeça enquanto os olhos vidrados, de sono, e ressequidos, da seca, acompanhavam o flutuar melífluo da brasa incandescente rumo ao meu braço. Extático, vi no ponto de luz flutuante as asas da pequena fada que acompanhava as narrativas de Peter Pan, o garoto relutante ao tempo.

Peter é o nosso medo da morte. Constatação óbvia. Mas algo mais me veio à cabeça. Ele tem enorme dificuldade de fazer de sua sombra uma seguidora. Foi aí que o bailado flutuando da centelha me levou à conclusão que divido. Peter voa e vive às voltas com problemas com sua sombra. Não deixa rastros, na maior parte do tempo. Aqui, neste plantão, do alto do meu cansaço, acabo por concluir que amadurecer é deixar rastros.

Vestígios que são uma trilha para nossos substitutos, herdeiros, seguirem alguma estrada traiçoeiramente menos obscura. Mas, ainda sim, uma estrada.  A pista do que seja a vida pelos rastros de quem, a altura da descoberta, só pode responder o que seja a morte.

Conjecturei. Especulei. E veio a dor, leve, mas dor. Da centelha que encontrou na pele do meu braço o propósito de sua vida: apagar sua luz no corpo vivo que elucubrava. Doeu ser queimado.

O que ardeu minha especulação. Ligeiro, constatei que o rastro do Quinto Noturno é ser o redator das crônicas reunidas do cotidiano que falhou. Falhou pelo acaso, falhou pela maldade alheia, falhou pela droga que vicia. Colho todos os rastros do equívoco que alimenta a crônica policial e faço deles meus rastros. Enquanto dura a minha jornada.

E tento viver mantendo minha sombra ativa, ainda que no escuro. E tento sobreviver, mantendo nos chão os pés que podem querer trilha a estrada dos caminhos mais fáceis – na ilusão de que se pode, voando, fugir do tempo.

Peter, arde a dor pequena da sua Sininho. Que, enquanto latejou, foi luz admirável, mas fugaz. Quando se confrontou com a luz tensa de uma vida, a minha vida, transferiu energia; não, luz. Tenho visto e consolidado rastros demais para ter a leveza da sua pretensão da juventude eterna, Pan.

Por isso, na madrugada de mais uma noite, vou colhendo rastros para semear histórias. Quero crer. Porque ser crente é coisa mais de maduro do que de jovem. Jovem tem certeza. Tanta certeza que acredita que não duvida que voa, quando acha que está voando , nem que pode se desvencilhar da sombra, quando acha que sua sombra fugiu...

Velho já o suficiente, nem tive tempo de me responder do que se alimenta Peter Pan. Não será dos meus rastros indigestos. Digo com alguma pouca certeza.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

MISTÉRIO QUITADO



Quando a vi chegar com um caco de farol e esquerdo olho roxo, achei que se tratava de batida de carro.

- Eu quero é saber do desgraçado que chutou a lanterna do meu carro. Um covarde que ainda me enfiou uma porrada na cara.

A candura também pode assustar. Ainda que seja na forma de uma pequena de cabelos curtos, voz roufenha e um intrigante olhar verdejante. Se o caco de farol chamou para si meu olhar, em um primeiro momento, já em uma segunda apreciação, foi a cópia de “Kind of Blue” – obra-prima de Miles Davis – que ela trazia no braço destro que me fez pensar a respeito do gosto da pequena.

Enquanto pensamentos vagavam nas diversas hipóteses da história daquela mulher, quase todas em conluio com minhas fantasias, descobri que pouca coisa nela dava alguma pista de quem ela era na realidade.

- Prefiro não me identificar. O que coloquei aí é suficiente, no B.O,é suficiente.  Quero só registrar o acidente. Sei que não fazem nada com isso. É estatístico!

- Mas o que tem aqui não presta nem para estatística. E esse olho roxo?

- Cara, é meu sapatinho de cristal...nada de ocorrência sobre isso.

- Parou, parou. Minha obrigação é entender se houve crime ou não.

- Eu conto a historinha, para você dormir bem hoje, mas sem dizer quem é mesmo a santinha aqui.
Plantão é isso. Delegacia é portão de desembarque de problemas. Último recurso do desespero. Claro que, assim sendo, nossas atitudes não são o que pode se chamar de sensatas.

- De acordo. Conta logo, princesa. E redijo sua ocorrência como se fosse comunicada por outra pessoa, que não tinha os dados suficientes.

A centelha da oratória cresceu no centro daqueles olhos verdes. Antes da delegacia, seu paradeiro era uma dessas boates alternativas (!?). Frequentadas por homens e mulheres que gostavam de homens e mulheres. Assim como em todas as situações de nossa cinderela, ela vivia de esconder a identidade nos casos fortuitos que admitiu colher pela vida.

O fetiche era deixar uma pista sutil para testar a capacidade de quem se dispusesse a descobrir seu paradeiro e identidade. Era a forma de tentar atrair uma forma verdadeira de amor. Que até agora não aparecera.

A ausência de identidade tinha, ainda, uma segunda explicação. Todo o jogo era monitorado pelo marido, cujo prazer se alimentava de histórias entre desconhecidos e sua mulher. Ele a levara à boite pouco convencional. Ele a resgatara , farta, do encontro com dois homens que a devoraram continuamente por doze horas seguidas – horas que renderam semanas de luxúria entre os dois. E essa era apenas uma dentre vários contos. Mas, ele tudo controlava. E, há duas semanas, sua lascívia era manter uma relação a três.

Ela fora isca. Atraiu uma mulher que, apesar da beleza do rosto, tinha o corpo carcomido por um acidente com fogo que lhe deixou enrugado cerca de 80% do tronco. Mas o corpo consumido incendiou o coração do marido. Que insistiu cada vez mais nas mesmas aventuras. E, de vez em quando, deixava-a fora dos encontros já então ardentes.

Em busca de uma solução, foi à mesma boate disposta a seduzir nova parceira e entregá-la de presente ao marido. Há uma semana.
Dentro do santuário dos pecadilhos, notou mais do que afetos incomuns, aos olhos pudicos da sociedade. Deixou-se encantar pelo cenário sem regras e a desenvoltura grotesca de homens dançando com roupas mínimas. Apesar do ambiente francamente gay, eles pareciam querer nas danças e gestos deixar claro a que regras sexuais submetiam-se.  

- Sempre senti tesão por paradoxo, desde a palavra, até o os olhos estrábicos que encontro na rua.
Eis, então, que a musa anônima se apaixonou por um Gô-Gô-Boy. Que nunca lhe revelou o nome da pia batismal. E que a levou a, no dia em que apareceu diante do meu balcão, ir até a boite mais uma vez, só com o marido.

Em pouco tempo, para seu desespero, marido e Gô-Gô-Boy estavam engalfinhados dentro da boite.

- Eu fui buscar um refrigerante. Era para encontrar o cara lá. Burra, demorei mais que devia. Meu marido foi me procurar. Ela estava eu, com o Gô-Gô-Boy sujando minhas orelhas de palavras e saliva.
O marido, acostumado ao comando, achou que se tratava de um flerte incômodo à esposa. Investiu sobre a massa de músculos que era o dançarino de boate.

- Foi quando ele deu um soco. O outro sujeito, que também não sabia do meu marido, revidou. Sei lá o que me deu: entrei na frente. Resultado é meu olho deste tamanho. Depois da merda feita, o dançarino me ajudou a chegar ao meu carro, com a ajuda de seguranças (tínhamos ido no meu carro, nem sei como meu marido voltou). Não falei que meu marido era meu marido. Disse que era um louco que me seguia sempre. Meu marido ainda acertou a lanterna do táxi na hora que estava indo embora. Tô fudida!

Se não houve agressão deliberada a ela, pouco eu podia fazer. Ela admitiu o gesto involuntário.

- Mas, depois de fugir, eu fiquei esperando o Gô-Gô-Boy sair, na esquina, até uma meia hora. Ele saiu de lá com uma puta! Mas anotei a placa do carro.

- Daí o registro de acidente?

- Sim, eu não sei nada do sujeito. E eu que sempre me aventurei no silêncio, quero descobrir onde ele está, quem ele é. E só tenho uma placa de carro e um hematoma como pistas.  Qual o nome dele, porra?! Eu preciso...
Fiz a ocorrência. Não dei os dados da placa. Eles não existiam para o sistema. Mistério com mistério se paga.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

AMOR DE PLACEBO

...Ciúme que corrói este seu olhar, detido tanto tempo para um de meus olhos. O que há lá afinal que não se vê no outro...?