Quando a vi chegar com um caco de farol e esquerdo olho roxo, achei que se tratava de batida de carro.
- Eu quero é saber do desgraçado que chutou a lanterna do meu carro. Um covarde que ainda me enfiou uma porrada na cara.
A candura também pode assustar. Ainda que seja na forma de uma pequena de cabelos curtos, voz roufenha e um intrigante olhar verdejante. Se o caco de farol chamou para si meu olhar, em um primeiro momento, já em uma segunda apreciação, foi a cópia de “Kind of Blue” – obra-prima de Miles Davis – que ela trazia no braço destro que me fez pensar a respeito do gosto da pequena.
Enquanto pensamentos vagavam nas diversas hipóteses da história daquela mulher, quase todas em conluio com minhas fantasias, descobri que pouca coisa nela dava alguma pista de quem ela era na realidade.
- Prefiro não me identificar. O que coloquei aí é suficiente, no B.O,é suficiente. Quero só registrar o acidente. Sei que não fazem nada com isso. É estatístico!
- Mas o que tem aqui não presta nem para estatística. E esse olho roxo?
- Cara, é meu sapatinho de cristal...nada de ocorrência sobre isso.
- Parou, parou. Minha obrigação é entender se houve crime ou não.
- Eu conto a historinha, para você dormir bem hoje, mas sem dizer quem é mesmo a santinha aqui.
Plantão é isso. Delegacia é portão de desembarque de problemas. Último recurso do desespero. Claro que, assim sendo, nossas atitudes não são o que pode se chamar de sensatas.
- De acordo. Conta logo, princesa. E redijo sua ocorrência como se fosse comunicada por outra pessoa, que não tinha os dados suficientes.
A centelha da oratória cresceu no centro daqueles olhos verdes. Antes da delegacia, seu paradeiro era uma dessas boates alternativas (!?). Frequentadas por homens e mulheres que gostavam de homens e mulheres. Assim como em todas as situações de nossa cinderela, ela vivia de esconder a identidade nos casos fortuitos que admitiu colher pela vida.
O fetiche era deixar uma pista sutil para testar a capacidade de quem se dispusesse a descobrir seu paradeiro e identidade. Era a forma de tentar atrair uma forma verdadeira de amor. Que até agora não aparecera.
A ausência de identidade tinha, ainda, uma segunda explicação. Todo o jogo era monitorado pelo marido, cujo prazer se alimentava de histórias entre desconhecidos e sua mulher. Ele a levara à boite pouco convencional. Ele a resgatara , farta, do encontro com dois homens que a devoraram continuamente por doze horas seguidas – horas que renderam semanas de luxúria entre os dois. E essa era apenas uma dentre vários contos. Mas, ele tudo controlava. E, há duas semanas, sua lascívia era manter uma relação a três.
Ela fora isca. Atraiu uma mulher que, apesar da beleza do rosto, tinha o corpo carcomido por um acidente com fogo que lhe deixou enrugado cerca de 80% do tronco. Mas o corpo consumido incendiou o coração do marido. Que insistiu cada vez mais nas mesmas aventuras. E, de vez em quando, deixava-a fora dos encontros já então ardentes.
Em busca de uma solução, foi à mesma boate disposta a seduzir nova parceira e entregá-la de presente ao marido. Há uma semana.
Dentro do santuário dos pecadilhos, notou mais do que afetos incomuns, aos olhos pudicos da sociedade. Deixou-se encantar pelo cenário sem regras e a desenvoltura grotesca de homens dançando com roupas mínimas. Apesar do ambiente francamente gay, eles pareciam querer nas danças e gestos deixar claro a que regras sexuais submetiam-se.
- Sempre senti tesão por paradoxo, desde a palavra, até o os olhos estrábicos que encontro na rua.
Eis, então, que a musa anônima se apaixonou por um Gô-Gô-Boy. Que nunca lhe revelou o nome da pia batismal. E que a levou a, no dia em que apareceu diante do meu balcão, ir até a boite mais uma vez, só com o marido.
Em pouco tempo, para seu desespero, marido e Gô-Gô-Boy estavam engalfinhados dentro da boite.
- Eu fui buscar um refrigerante. Era para encontrar o cara lá. Burra, demorei mais que devia. Meu marido foi me procurar. Ela estava eu, com o Gô-Gô-Boy sujando minhas orelhas de palavras e saliva.
O marido, acostumado ao comando, achou que se tratava de um flerte incômodo à esposa. Investiu sobre a massa de músculos que era o dançarino de boate.
- Foi quando ele deu um soco. O outro sujeito, que também não sabia do meu marido, revidou. Sei lá o que me deu: entrei na frente. Resultado é meu olho deste tamanho. Depois da merda feita, o dançarino me ajudou a chegar ao meu carro, com a ajuda de seguranças (tínhamos ido no meu carro, nem sei como meu marido voltou). Não falei que meu marido era meu marido. Disse que era um louco que me seguia sempre. Meu marido ainda acertou a lanterna do táxi na hora que estava indo embora. Tô fudida!
Se não houve agressão deliberada a ela, pouco eu podia fazer. Ela admitiu o gesto involuntário.
- Mas, depois de fugir, eu fiquei esperando o Gô-Gô-Boy sair, na esquina, até uma meia hora. Ele saiu de lá com uma puta! Mas anotei a placa do carro.
- Daí o registro de acidente?
- Sim, eu não sei nada do sujeito. E eu que sempre me aventurei no silêncio, quero descobrir onde ele está, quem ele é. E só tenho uma placa de carro e um hematoma como pistas. Qual o nome dele, porra?! Eu preciso...
Fiz a ocorrência. Não dei os dados da placa. Eles não existiam para o sistema. Mistério com mistério se paga.