Confesso que, durante algum tempo, fiquei impotente diante da possibilidade de encarar um devastador final feliz. Literatura é a vida. Final feliz e ficção. Em raros casos, encontram-se. E, em geral, consolida-se uma tragédia. Vamos aos fatos.
Benedito empunhava na mão, cujo indicador e o polegar formavam uma pinça, um cabelo crespo. O leitor óbvio já adivinhou se tratar de um pentelho. E branco. O título é franco. E assim iniciei meu atendimento a Benedito. Sujeito ainda novo.
- Sujeito ainda novo...Sabe, policial, quando querem ser gentis, as pessoas dizem que ainda somos novos. As palavras sobrevivem ao tempo. Nós, não. Sou cronista, o senhor sabia? E prometi a uma sacaninha que ela não valia uma crônica minha.
Assim como o cronista parecia se entreter filosofando sobre sabe-se-lá-o-quê, inspirado em um pentelho branco, eu me contive para não lhe falar: “caro cronista, lamento informa-lhe que sua profissão tem no tempo sua matéria, sua pauta. Seja o tempo da rapidez de um fato que escapa à maioria, seja o tempo que empalidece diante do tédio.
Porque o tempo do cronista é sempre colorido. Não coincidentemente, crônica tem na sua origem a palavra Cronos, nada mais que Saturno, o senhor do tempo na mitologia”. E por que eu falaria uma merda assim para alguém, em plena madrugada. Iríamos nos perpetuar em uma maldita tertúlia. Voltei a prestar atenção “naquelezinho”.
- Não tenho nada para escrever dela, policial. Eu tinha. Tinha, sim. Ela era diferente. Autêntica. Dezenove aninhos e autêntica, segura, menina e já segura de si. Envelheceu com 25. Depois de seis anos, a gente se vê, finalmente, e ela envelheceu. Ficou velha. Ficar velho é ficar como todo mundo. Ela ficou como todo mundo.
- A polícia não para o tempo. A polícia para bandido. E para inocente. E o senhor? O que deseja?
- Registrar um desaparecimento de pessoa. Ela me encheu de porrada, cacete! A gente se encontra, depois de seis anos, e ela me enche de porrada. Me desmaiou em frente a um bocado de pessoas.
- Porrada?!
- Me deu uma gravata, um mata-leão. Apaguei.
- Lesão corporal. Quer registrar lesão corporal, é isso?
- Não. Desaparecimento de pessoas. Aquelazinha roubou minha menina. Minha lembrança. Colocou um brucutu de saias no lugar.
- Mais uma vez: polícia não registra poesia. Registra ocorrência.
Mais estranho que a presença do sujeito era me dispor a ver onde aquela conversa chegaria.
- Olha, companheiro, não tem como registrar o desaparecimento. Iria mobilizar uma cambada de gente apenas para dar conta do seu sofrimento. Mas me conta, o que fez a menininha sair do sério e lhe desmaiar?
- O crepúsculo do macho, o crepúsculo do macho. Eu achei que seria fácil minha cabeça moderninha suportar o tempo. Mas o crepúsculo do macho é mais forte do que a hegemonia do cérebro. Sim, a importância do homem cresce de baixo para cima. Eu conheci a menina quando era novinha. Nós nos separamos. Eu a achava nova demais. Ela, que eu era velho demais. Mas o que nos o desejo recíproco. Não me importor de ser velho. Mas dói é não ser desejado.
- Ué, mas ela não precisa gostar para sempre...
- Mas ela conversava com você. Talvez diga alguma coisa.
- Quando a gente quer, tudo, tudo diz alguma coisa. E sabe o que ela queria dizer? Sabe? Que não se impressionava mais comigo. Que eu era tão impressionante quanto café passado em dia frio. E tudo isso porque ela, ela está no auge do vigor físico,sexual...vinte e cinco aninhos. Entendeu? E eu passei de protagonista a lembrança. Uma baixaria. Soube disso tudo em meio a uma baixaria. Sabia que eu sou um babaca?! Sou, ela quem me disse. E repetiu, para ficar claro. Mas sepultou tudo com o um...”velho babão”. Nem se deu ao trabalho de ser original. Aliás, quis me colocar mesmo na porra da vala comum.
- E a polícia, onde entra?
- Quero minha menina!
- O senhor quer é seu tempo de volta. Mas não temos como recuperá-lo.
- Eu tenho uma pista de onde ele está. Se eu ajudar, o senhor tenta encontrar?
- Que pista é essa?
- Aqui!
Lá estava o exemplar descolorido de um pelo pubiano na mão do meu interlocutor.
- Depois de ouvir tudo o que ela disse, enchi a cara. Tomei todas. Quando acordo, de manhã, decidi ir ao banheiro. Para meu desespero, me deparo com um pentelho, mas não um pentelho qualquer. Um pentelho branco. Porra, branco! Como é que faz? Pinta? Corta?
É, caro cronista, a solução para o tempo é penteá-lo, quando restam cabelos. Mas minha filosofia sobre o tempo não se embrenha nos vagos abismos pubianos. Assim, restou-me cordialmente lhe convidar a um retiro que começaria nos limites da porta (de lá para fora!) de minha delegacia. Só não lhe disse - e você descobrirá - que o branco, que lhe cobre cabelos e descolore o púbis, é uma cor que se forma da reunião de todas as outras. Seus pelos brancos são frustos de anos coloridos. Com essa resposta, despedi-me de você, e consegui destilar um certo mal gosto, capaz de colocar-me a salvo de um final totalmente feliz.